segunda-feira, 15 de novembro de 2010

ELAS MORREM ANTES

A discriminação contra a mulher, suavizada em alguns níveis, é terrível no de menor poder aquisitivo, de menos letras, pela falta de informação principalmente. Tive que acrescentar principalmente, já que continuam acontecendo exceções, lá e cá. Mesmo entre intelectuais ainda há quem duvide do que uma mulher seja capaz.
Certa feita, vi-me em defesa da sociedade, da vítima e de sua famIlia, no julgamento de três jovens, entre 20 anos, que assassinaram uma outra de igual idade, após saída de um desses malfadados bailes que existem por ai, decidiram que ela tinha que morrer.
Entre os agentes, um era “homem”. Impressionou-me, quando interrogado, o tom com que mencionou suas companheiras, colegas, sei lá. Denominava-as com um sorriso sarcástico, não como meninas, tipo, “as meninas lá”... mas “mulhé”; as “mulhé”. E a impressão não decorria da má pronuncia, mas da semântica que impregnava ao termo. Mulhé ou lixo nada mais. Tinha que fazer o que ordenasse. Podia usar e abusar como lhe aprouvesse.
Em nada se assemelharia àquela, que canta a canção: “que venha esta nova mulher de dentro de mim, com olhos felizes e felinos e mãos de cetim...”
Todo este intróito para dizer: “Kapitu” não morreu na madrugada de domingo da semana passada. Já tinha morrido há bem mais tempo.
Só ignora quem não quiser ver que a realidade social é dolorosa, que a pobreza é uma desgraça e que passou de muito a hora de começar a mudar a cara das periferias de nossas cidades, que requerem construção de casas sim, mas também de uma assistência eficaz às famílias dando-lhes consciência da própria dignidade e dotando-as de capacidade de criar os filhos de forma que sejam crianças por todo tempo a que têm direito, sejam adolescentes e jovens assistidos por programas que absorvam suas energias, desenvolvam suas potencialidades, canalize-as para a reta via.
Tem que fazer escola bonita na favela, tem que propiciar ensino de qualidade, proporcionar atividades que não são esta ou aquela para todos, mas segundo as tendencias pessoais e gostos individuais. Tem que provar para a criança e o adolescente que tudo tem seu tempo certo.
Por ai, sem opções, se entregam de corpo e vontade, com tudo de que melhor são dotadas “a quem der mais”. Muito antes da hora se entregam com volupia à prática sexual e se viciam. Uma vez viciadas, “era uma vez uma menina que queria ser ... mas um dia colocaram-na numa roda e lhe deram X tiros na cabeça”.
Morrem naquele dia, em que o curso regular de suas vidas foi interrompido e viraram “mulhé”, objeto de prazer sujo e desenfreado, mães incapazes de maternidade. Assim, até que vítimas de alguma doença triste ou de adversidade acabarão por ser envolvidas por um manto de madeira, algumas flores colhidas furtivamente em algum lugar, uma cova rasa.
Viver não é padecer martírio lento, pelo que, o dia da morte é só o da consumação final. Na verdade, elas morrem antes.

Este artigo data de 25 de fevereiro de 2002