terça-feira, 4 de janeiro de 2011

JUQUITA E INÁ

            Iná pousara o crochê nos joelhos e deitou o olhar através da janela a contemplar no fundo do vale, a cachoeira que rumorejava e deslizava incansavelmente por anos sem fim . Mais além, balouçavam os galhos  das roseiras, cobertas de  flores  que se desgarravam ao vento e deixavam o chão como um tapete imenso, todo matizado... Ao longe, pastavam alguns bois e por já ser tarde, os passarinhos antes de se recolherem aos ninhos, trinavam melodiosos cantos que espargiam na amplidão.
           
            Era uma tarde assim, aquela em que Iná viu Juquita pela primeira vez, ele tinha 20 anos, ela 16. E o amor nasceu. A princípio, consistia na passagem cotidiana dele, frente a sua porta, ela naturalmente, lá estava feliz, desde antes, como a Raposa do Pequeno Príncipe, porque ele ia passar. Sorriam um para o outro, olhavam-se, era tudo, eram felizes.

            Numa tarde de domingo, à saída da igreja, se encontraram, quase não falaram, a presença recíproca bastava.  O amor botão desabrochou, fez-se forte e quatro anos depois se concretizava num sim.

             E como este sim os levou longe!

            As finanças nunca eram bastante, veio o primeiro filho e foi uma alegria imensa. Apesar de pobres... bem, pobreza não impede o nascimento de frutos do amor. E apesar de tudo eram felizes; veio o segundo filho, o terceiro veio, outros também vieram. A vida interiorana produzia pouco e as dificuldades não eram compreensíveis, abatiam-se implacavelmente. Mas Juquita foi sempre um folgazão, alegre, brincalhão, sempre a gozar de tudo e de todos e tristeza com ele não tinha vez.

            Os meninos cresciam, precisavam ir para a escola, começaram a frequentar a mais próxima. E todos os dias as mesmas coisas aconteciam. Carinhosamente preparados pela mãe, estavam sempre limpas suas roupinhas ainda que de gente pobre.

            Iná via-os sair, continuava depois a cuidar dos menores que não estavam em idade escolar e naqueles tempos, não havia este luxo de jardim de infância.

            Na volta da escola, o Maurílio sempre apanhava do seu predecessor na família, o Marcelo.  Mas também, com vontade ou sem ela, chorava até chegar a casa, só para ver o outro levar uns petelecos do pai.

            O tempo passou. Os meninos se tornaram homens, cada qual foi-se colocando, os mais velhos ajudando os mais novos, todos se formaram e os velhos pais que também não eram tão velhos, chegados ao ápice de sua missão, rendiam graças a Deus, pelos netos que vinham, pela família que se reunia e enchia a casa com os risos das crianças, as gargalhadas  dos rapazes.

            Mas a saúde do Juquita debilitou e foi descendo sempre mais. Inspirava cuidados, muitas proibições lhe foram feitas e exatamente das coisas que mais gostava, o cigarro, uma gostosa polenta prá comer prá valer...
            Um dia, num gesto muito seu, sobe numa goiabeira, ao vê-lo, a boa Iná o repreende:

            - Juquita, você não tem juízo não?

            - É que eu fui tirar esta goiaba prá você.

            E quem podia dizer mais alguma coisa?

            Solicitados pelos filhos, cada qual em cidades distantes, vão os dois passar dias aqui, recepcionar netinhos ali, visitar F. que quebrou o braço... E foi exatamente numa dessas visitas, São Mateus, onde mora Maurílio, que depois de ter conversado com tanta gente, de ter sido visto na janela por outros tantos, ele a chama:

            - Iná, vem cá.

            Pressurosa, ela corre e o encontra com aquelas características que o médico prevenira antecipar-lhe o fim.  Apela para a mãe da nora, pessoa que lhe estava mais perto, o médico é chamado, vem rapidamente, tudo se fez, mas aquele era o dia em que o Senhor o elegera.

            Que pena! Ela fica em pranto, choram todos, os amigos a cercam.  Será que é possível continuar vivendo, voltar àquela casa... como sobreviver se ele já não existe? Como ...?

            Eram estas as lembranças que aquela tarde, já quase absorvida pela noite, lhe trazia.  De fato, era duro demais!
           
            Contudo, como ensinara o Pajé a Tibicuera, os pais não morrem nunca. Eles continuam a viver nos filhos... é quando a pequenina Danielle, netinha de três anos, achegando-se a ela, toma-lhe as mãos e convida:

            - Vovó, vem jantar vem!

            Ela se deixa conduzir, uma estrela despontara no céu e dava-lhe impressão de falar-lhe como se fosse ele:  A frente, Iná, a vida continua, no dia do Senhor, nós ressuscitaremos.

            No coração de Iná reacende-se a fé que sempre a sustentara nos dias difíceis de outrora, quando nem tudo eram flores. Na igrejinha pequenina da cidade, os sinos dobravam, do seu coração brotou a prece do Angelus e  em tempo algum foi mais intenso o seu ardor ao repetir : “faça-se em mim segundo a vossa vontade”.

Um conto de 1976.