segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A ESCRAVA QUE NÃO SORRIA

            Vó Zica costumava sentar-se à beira do fogão de barro de sua casa, para “quentar fogo”, como ela dizia. Será que vó Zica  “quentava o fog o” ou  era o calor do fogo que a “quentava”?
            Alegre, depois de saborear com boa disposição o prato de comida que a filha lhe preparava, estava sempre disposta a repetir velhas histórias. Principalmente, do tempo da escravidão. Entre tantas que ouvi, guardei bem a da preta Zuma.
            Era uma negra muito bem traçada, rosto de Sinhá em cara de escrava. Um nariz afiladíssimo... E como tinha graça no andar! Tudo que botava em cima, nela resplandecia. Muito asseada, cheirava que nem flor.
            Zuma acordava sempre antes do sol, vestia-se como princesa nos seus andrajos de mucama, dirigia-se à cozinha. Não se passava muito tempo e o cheiro do café e do pão fresquinho se espalhava pelo casarão. Tinha uma mão de fada.
Era também a preferida de Sinhá, que a solicitava para todo serviço. Nunca se viu Zuma resmungar, nem muito menos sorrir.
            Foi exatamente Sinhá quem resolveu a perguntar-lhe um  dia:
- Zuma, vejo-a sempre ocupada nos diversos afazeres. Tudo seu é muito bem feito! Mas por que nunca sorri?
Com um olhar amigo e doce, envolveu a Senhora, mas não lhe deu resposta. Havia tanta  grandeza naquela atitude, que nem mesmo o fato de se tratar de uma escrava diante de sua Senhora, fez com que Sinhá se ofendesse. Respeitou aquele silêncio, como quem compreendera que eram muitas e sólidas as razões.
Zulu, filho do escravo Dundi, enamorou-se de Zuma com quem pretendeu casar-se. Era um negro alto, corpo de atleta. Bem olhado por todas as negras casamenteiras da senzala.
Havia outros pretos que muito gostariam de casar com ela. Zulu, no entanto, se destacava, porque tinha grandeza de alma e era muito respeitoso. Se a moça reunia todas as qualidades para ser uma boa mulher, não faltavam ao rapaz, as de um bom marido.
Ao se aproximar, assim que pode, da escolhida e pedir-lhe a mão em casamento, ouviu como resposta:
- Não. Não quero me casar. Não quero ser mãe de outros escravos que devam viver a vida como nós. Aprendi no catecismo que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e que todos somos seus filhos. Ou surge o dia da liberdade e todos seremos mesmo iguais, ou, pelo menos, eu não gerarei escravos.
Os dias passaram-se. Certa manhã, não se espalhou pela casa, o cheiro do café e do pão fresquinho de Zuma que também não era vista em qualquer outro lugar.
Procurada na velha cama, num canto da senzala, a escrava  ardia em febre, pronunciando palavras que ninguém pôde entender.
Avisada, Sinhá mandou que lhe chamassem um médico. Antes que ele chegasse, a alma de Zuma voou para Deus no céu.  Exalava o último suspiro, enquanto um negrinho  que surgiu correndo, anunciava a boa notícia: Somos livres, somos livres, acabou a escravidão!!!
Zuma não viu despontar a aurora da liberdade física na terra, mas viu-a em grandeza sem fim, nascendo para a vida eterna ao chegar ao céu.

Marlusse Pestana Daher
em homenagem aos que continuam na luta...