quinta-feira, 3 de novembro de 2011

DISCURSO DE POSSE

Quando uma escritora é admitida na AFESL cumpre-lhe discorrer sobre a vida de sua Patrona, aquela que dá nome à cadeira que irá ocupar.

Em 5 de maio de 2001, tive essa satisfação e proferi o seguinte discurso.

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA FEMININA ESPIRITO-SANTENSE DE LETRAS

Cadeira 33 – Patrona: Argentina Lopes Tristão

Marlusse Pestana Daher


20/10/2011
Senhora Acadêmica Maria das Graças da Silva Neves, DD Presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras

Senhoras Acadêmicas, minha querida mãe, meus familiares, amigos e amigas, senhoras e senhores.

Em pouco mais de seis laudas, escritas em antiga máquina de escrever, ela assim encerrou sua auto biografia: este documento que encerro em cálida manhã do dia 24 de novembro de 1992, foi elaborado no meu “chalet” a Rua Roberto Kautsky, s/n, na cidade de Campinho (Domingos Martins).  E o dedicou a mim, é a mim![1] São exatamente estas as palavras com que o fez: Eu o ofereço a minha possível sucessora na Academia Feminina Espírito-santense de Letras.


        Certamente, D. Argentina jamais pensou que aquela moça com quem um dia conversou em italiano, na sua loja da Rua do Rosário, para quem autografou um pequeno livro, onde reuniu em trovas frases copiadas de pára-choques de caminhão, fosse exatamente, a destinatária desse seu gesto de carinho. Para dizer da minha sensibilidade ao recebê-la, dirijo-me às suas duas filhas, aqui presentes, Diana e Maria da Penha, com meu sincero muito obrigada.

        De quem vem a ter assento em uma Academia se diz que se torna imortal “mas não imorrível” na expressão real e divertida de Murilo Melo Filho. Argentina Lopes Tristão, hoje, mais que ontem, é imortal. Seu nome e sua lembrança não perecerão, porque além de ter pertencido a esta Academia, a cadeira 33, que ora, com orgulho e alegria assumo, tem seu nome.

Quem foi Argentina?  filha de um pai português, Luiz Antonio Lopes e de uma mãe brasileira, Maria Lopes da Cunha,  nasceu aos 14 de abril de 1914, na aprazível região de Monte Belo, em Iconha, neste Estado.


        A família mudou-se pra a cidade de Manhuaçu – MG, quando Argentina tinha sete anos de idade. Ali, a menina cresceu, se desenvolveu e  completou  o curso da Escola Normal Oficial, com defesa de tese sobre “Metodologia do Ensino de Português”.

        Dedicou-se ao estudo da língua francesa, então considerada universal, vindo a dominá-la com fluência, além do italiano e do inglês. Guardou com carinho, nome de Mestres de cujos ensinamentos bebeu, mencionando Dr. Juventino Nunes, um professor de português; D. Maria Batista Nunes,  professora de geografia e história; D. Maria Vicentina Nunes, professora de ciências naturais, física e química e como não poderia deixar, D. Maria de Lucca Pinto Coelho, professora de francês.

        Foi freqüentadora assídua dos vários grêmios existentes na cidade. No Grêmio Literário “Coelho Neto”, encontrou o sabor dos pendores para as letras  aos quais desde então se sentia inclinada.

Pela declamação de poesias, percebeu, como afirmou a “sensibilidade trazida pela musicalidade da palavra que nos torna sensíveis ao aprendizado de outros idiomas”.


        A ela se deveu a mais eficaz projeção do jornal “Idéia Nova”, de nível essencialmente literário, órgão oficial da Escola Normal de Manhuaçu, freqüentada só por moças, editado nas oficinas de um ex-ministro, Dr. Segadas Viana, residente na cidade.

        Lembra da educação para a feminilidade recebida na sua vida estudantil, mas também das aulas de tango, substituindo a ginástica comum. Além das de  arte culinária,  costura e trabalhos manuais, que na minha sensibilidade repercutiu como qualquer coisa lembrando outros tempos,  “o tempo de cabeça, do limão de cheiro, negro do recado, ...”[2]

        Confessou-se admiradora de todos os gêneros literários, mas “inimiga ferrenha da escabrosidade na poesia”, como se quisesse reafirmar que: se a palavra que disposta em versos não conseguir provocar aquele arrepio que brota da mais perfeita sensação de beleza, se não provoca emoção, poesia não é.

        Cultuou Catulo da Paixão cearense como o poeta sertanejo por excelência, além de José da Luz. No ápice de sua produção literária, quem mais a teve foi a trova que denominou “eficientíssimo veículo de comunicação entre poetas” De fato, fiquei sabendo que era em trova que se correspondia freqüentemente, por exemplo, com o Acadêmico Humberto Del Maestro, outro trovador capixaba, que a brinda e homenageia, dotando a  “A F E S L”  com algumas dessas pérolas.

        Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, da Associação Espírito Santense de Imprensa, além de presidente de honra da Casa da Cultura de Afonso Cláudio – ES. Primeira trovadora a se inscrever Clube de Poetas e Trovadores de Salvador - Bahia. Reuniu em seu currículo, inúmeros certificados de participação em diversis  eventos pelo Brasil e  no exterior.

        Deixou três pequenos livros de “trova adivinha”, “Legendas de pára-choque”, também em trovas. Em sonetos: “Cadeia de Sonhos”; “Cenas da Vida Diária” (crônicas), um livreto com o título de “Sonetilho”; em poema livre, deixou a “História de Afonso Cláudio” (de sua fundação a 1930); “A Trova Adivinha” em parceria com Amália Max (do Paraná); “O Menino José” é obra com que resgata  história da vida de José Ribeiro Tristão, “esse grande administrador de empresas de saudosa memória”, afirmou ela.

        Muito jovem, três meses e três dias após terminar os estudos, desposou Raymundo Ribeiro Tristão, com quem teve três filhos, Luiz Misael Lopes Tristão, já falecido; Diana Lopes Tristão e Maria da Penha Tristão de Souza que lhe deram nove netos.

        Por influência do marido, ocupou-se por muitos anos no comércio, onde sua  alma de poeta deu vez à estilista incomparável no seu tempo. Muitas foram as noivas que no dia maior de suas vidas, subiram ao altar vestidas sob inspiração de D. Argentina. De fato, ela até registrou em suas memórias, a dedicatória lançada pela também acadêmica, Magda Lugon, no seu livro “Pequena Flor”: “Para minha querida Argentina, que com sua arte, criou-me o mais lindo vestido que jamais exibi em minha vida: o meu vestido de noiva”.
       
        Na hora que julgou chegada, D. Argentina deixou as demais atividades, deixando permanecer intata a trovadora e escrevia freqüentemente.

        No seu chalé em Domingos Martins, premiada pela natureza, deu asas aos sentimentos que se afloravam, não se podava e assim era que se divertia com o bando buliçoso da garotada da rua, deliciando-se  em banhos inesquecíveis em sua piscina. Quando recriminada por algum familiar, respondia que era muito bom ouvir toda aquela algazarra, música impagável.  Outra prova do quanto com os garotos se identificava se traduz no contato com aqueles que invadiam a Praça Costa Pereira, a quem fornecia lanche e  falava da presença de Deus que tudo vê.  Um Deus que cultuou sempre ainda que jamais se tivesse ligado aos preceitos de uma religião.

        No dia 22 de maio de 1999, Argentina Lopes Tristão aceitou um convite para uma seresta em cuja oportunidade seria mais uma vez homenageada, na Casa da Cultura em Afonso Cláudio. Na hora precisa, dirigiu-se para lá onde era esperada pelo Senhor da Vida que diligenciaria seu regresso à casa do Pai.

        A festa da terra murchou, mas foi um espetáculo a que aconteceu no céu! Os amigos da terra não conseguiram sufocar o pranto, mas os do céu vibravam com a chegada de Argentina.

Na Igreja católica, comemorava-se a festa de Santa Rita de Cássia, gostam de lembrar seus familiares, que exatamente por isto, como que se sentem de certa forma recompensados, pela incomparável perda.

Na busca de uma sua palavra para constituir em síntese do seu testamento literário, respaldando a afirmação de sua filha, Maria da Penha, que a definiu como “uma mulher  sintonizada com as causas e as coisas do seu tempo”  escolhi duas trovas:

“Eu tenho um profundo amor,               “O gesto vil do atentado
Ao irmão deficiente,                           De conseqüências insanas
Pois o grande Deus Senhor,                 Que torna animalizado
Não vê ninguém diferente”.                 O uso das forças humanas”.

Esta fala se restringe ao canto sobre a Patrona da cadeira que passo a ocupar. No entanto, como já me acostumei a ser repetidamente perdoada, quando externo minhas irresignações, espero que mais uma vez, assim aconteça. É que não posso sufocar um sentimento profundo que me possui:  o da mais  sincera e profunda gratidão às Acadêmicas que  generosamente referendaram meu nome, tornando-me integrante dessa Casa, onde doravante espero estar contribuindo na defesa dos objetivos que se propõe.  Ajudem-me, também lhes peço, para que a cada dia seja menos incapaz e envide os melhores  esforços,  na defesa da Língua Brasileira, na sua mais alta expressão.

        Nem posso deixar de citar os amigos que me alimentam com o incentivo da presença e da amizade; a minha família que aqui está, participando comigo da grandeza e da magnitude desta hora, principalmente à minha mãe, a quem dedico este momento.

        Sobretudo e sobre todos a Deus,  que me dotou dos  dons que tornaram ser possível, ser  aceita e estar aqui e por tudo o mais que nem conheço e nem sei! 


[1] Entendi depois, sua sucessora foi Berenice Heringer na Cadeira 3. Patrona Virgínia Gasparini Tamanini.
[2] “Tempo de cabeça, / do limão de cheiro, / negro do recado, / bilhetinho pro seu bem amado,/ saias engomadas, gola no pescoço, faces em rubor,/ só em pensar no primeiro amor,/ se papai queria,/ mamãe concordava,/ o noivo aparecia,/ já vestido para casar,/ que importava se não se gostassem,/  primeiro casassem/ pra depois se amar./ Tirutiruri, que bom,/  tirutiruri, perdão,/ ó vovó, me desculpe,/ mas esse tempo não servia não”...