sábado, 26 de novembro de 2011

DOLORES SIERRA

       Quantas vezes terei cantado, claro, imitando a postura da voz de Nelson Gonçalves, “Dolores Sierra”, aquela, que “vive em Barcelona, na beira do cais”.
Não tinha castanholas e sua companhia era a de quem desse mais. Nascida em Salamanca, de um pai lavrador, chegada à maior idade, parte para o mundo. Passara toda a adolescência nas asas da imaginação, em sonhos fantásticos mil, entre eles, mudar para a cidade grande.
Não obstante o pranto copioso da mãe, sua fantasia forjada longamente, foi capaz de superar tudo. E, mesmo depois das lágrimas abundantes que também seus olhos versaram, afinal de contas, amava muito os seus, partiu.
Praticamente, no mesmo dia de sua vida catalunha, conheceu D. Pedrito. Tinha que ser um Pedro, cujo nome se associa sempre a quem é muito levado e “apronta todas”!
Pois bem, encantado com tamanha e angelical pureza, tomado da cobiça e da vaidade de “ser o primeiro”, aproxima-se, seduze-a, nada menos, e lhe faz promessas inúmeras nos dias que passaram a viver  juntos numa pensão nas imediações do hoje “Porto Velho” de Barcelona. Mas está tão bem cuidado, tão limpo e majestoso, que de velho só resta o nome.
As promessas? Faria de Dolores rainha, cobri-la-ia de seda do Líbano, de aromas de França, sapatos macios e na mesa nunca faltariam as melhores iguarias. Imagine-se todo esplendor por onde quer que estivessem ou passassem!
Na casa onde viveriam... de amor, contaria com serviçais altamente qualificados, quem melhor pudesse prestar. Bastaria que ela permanecesse linda, produzida no melhor estilo, com hoje se diz, contando as horas da ausência dele, até que  pudesse voltar.
Num tocar de sonoras campainhas, aliás, diversas, cada som traduziria uma finalidade, todas as solicitações, todos os desejos que tivesse seriam prontamente satisfeitos.
Foram poucos aqueles dias, mas o suficiente para ter sido profundamente sugada.
Naquela manhã, um facho de luz consegue transpor as cortinas da janela e atingiu-lhe a face. Era de meio-dia a pino. Virou-se, ainda de olhos fechados, mas com um sorriso emoldurando os lábios, suas mãos procuraram o corpo do amado que ali já não estava.- Bem, terá saído...
Mas as horas passam, veio a noite e nada. Sem saber mais o que pensar, de tão cansada, acaba adormecendo...
Desperta cedo no dia seguinte e dirige-se ao restaurante para o desjejum. Ao fim, o dono da pensão a chama e comunica que suas diárias pagas findavam ali.
Apesar de nascida na roça, era dotada de inteligência bastante para entender que fora enganada. No quarto, chorou todas as lágrimas que pôde e como o meio dia se aproximava, reuniu o que era seu e ao transpor a soleira daquela porta, pisou a sarjeta, era mais um autômato que gente.
Rumou na direção que a conduziram seus passos e quando pôde perceber, viu-se no cais do porto.
Sentada num degrau de pequena escada, passou o resto da tarde e quando a noite totalmente se fez, sem nem divisar o rosto do homem que lhe estende a mão e ajuda a levantar-se, deixou-se conduzir.
Dia seguinte, primeiras horas da manhã ainda, ele a despede depondo-lhe na mão, uma peseta.
Faminta, com sede, com frio, passa a viver os dias, à beira do cais. Posto que muito bela, não lhe faltava companhia, a de  “quem desse mais”. Até quando?
Pelo que se ouve, nosso poeta também a conheceu, esteve em sua companhia, tanto que “pagou a despesa”. Mas ele também como tantos, ao apito do navio, foi-se, não sem antes dizer adeus, a Barcelona e a Dolores Sierra.
O tempo passou, o nome de Barcelona ancorou na minha memória ligado a essa história triste, em música tão agradável cantada.
Em viagem às plagas catalúnicas, me propus, tenho que conhecer o cenário da vida dessa mulher imaginária que são todas que podem contar história idêntica a sua.
E não é que após longa caminhada, primeiro por ruelas estreitas, maravilhosas, a partir da Praça da Catedral, me vi em Las Hamblas, onde acabei por chegar ao Porto Velho!
Pelo passeio central, deparei-me com um cenário de tantos ambientes, tanta variedade de nacionalidades, de demonstrações teatrais, grupos de dança, de todo tipo de criatividade que se puder imaginar.
Lá está também, resultado da comemoração dos 500 anos de descobrimento da América, um monumento com uma estátua de Cristóvão Colombo, voltada para os mares “nunca dantes navegados”. O pedestal  de tão alto, obriga inclusive quem muito alto é, para olhar, a voltar a cabeça inteiramente para trás.
Que mania, pôr tão alto quem  não se pode mais ver, nem ser visto! É por isto que faço parte dos que acham que toda ternura que se quiser demonstrar a qualquer ser humano, que se faça agora, adiar ou esquecer resulta inútil.
Estavam lá, um paço enorme que precede a chegada à beira do cais, edifícios bem cuidados, dezenas de embarcações multicoloridas, gente que caminha de lá para cá, ônibus que trafega com turistas, tudo demonstra ares de quem, recentemente, sediou edição de jogos olímpicos mundiais.
Depois de ter fotografado tudo, girando-me como em círculo, pergunto-me onde Dolores Sierra se encolhera naquele triste dia? Em que degrau sentou-se, se aqueles que ali estão só servem de passagem para quem chega a vistosas embarcações de passeios ao largo?
É que aquele já não é o cais do porto que acolheu Dolores, ela não está mais ali... Mas que minha divagação valeu, ah isto valeu e como!


Barcelona, 8 de setembro de 2006