sábado, 27 de julho de 2013

ERA SÓ UMA LIÇÃO DE AMOR


Na manhã de hoje, de sol esplêndido e apenas algumas nuvens mais ousadas, talvez porque fossem tão lindas e suaves, se interpunham à visão plena do céu de infinito azul. Sai de casa para um desses afazeres comuns e necessários a todos nós, ir a um banco, ao supermercado, ao correio, buscar alguma coisa em algum lugar.

Passava exatamente por uma esquina, despendendo apenas a atenção necessária que a circunstância requer, quando, improvisamente, me vejo ser abordada por aquele homem.

No primeiro momento, confesso, fui possuída de certo temor, inúmeras hipóteses acorreram a minha mente, vivemos sentindo medo... Mas bastou erguer o olhar para de imediato, sentir imensa quietude, agora, possuída da certeza de que se tratava de um tipo que não pretendia fazer mal algum a ninguém. Seu semblante era de quem refletia.Cabeça inteiramente coberta pela neve do tempo, barba feita, face quase rosada, como de alguém que todo dia sai de casa e vai tomar um pouco de sol.  As roupas que não chegavam a ser surradas, também não revelavam que fosse o caso de se colocar fora de uso. Estava calçado.   O corpo vergado denotava seu avanço em anos.

Queria apenas falar alguma coisa. Claro que me dispus e na melhor atitude que encontrei coloquei-me em atitude de escuta diante dele.  Ao notar a placidez daquela face, olhar distante de mim, repreendi-me por ter julgado que não obstante a aparência, e, certamente não precisar, fosse do tipo que pede dinheiro.
Há gente assim, por duas vezes, em um mesmo supermercado, com narrativa da mesma história deparei com velho conhecido, fora funcionário de banco. Passava necessidade... e  deixei-me cair em “autêntico conto do vigário”. Da segunda vez, não, além de lhe ter acrescentado doces, mas firmes palavras de repreensão. Só vi, quando se esgueirando entre prateleiras, sumiu para sempre. Nunca mais o vi.

Era só uma lição de amor
Meu interlocutor, ao invés, só queria ser ouvido. Ele sim, bem que gostarei de reencontrar muitas vezes.  Sem preâmbulo, objetivamente, como se fôssemos velhos amigos, ou retomássemos um discurso inacabado, como se tivéssemos travado outros tantos diálogos, foi-me perguntando, simplesmente: - Alguém pode se esquecer de alguém que o tenha tratado com carinho?

Não podia ser outra minha resposta: - claro que não. Nem sei se era o que queria ouvir, não sei sequer se queria alguma resposta, do mesmo modo que chegou, prosseguiu  seu caminho. Ainda olhei para trás e só vi um homem seguia.

COLCHA DE RETALHOS

     

Scarlet tinha os olhos marejados pelas lágrimas tiradas da alma em conflito consigo mesma. Os cabelos grisalhos,  desalinhados, esfarelados sobre os ombros num completo desatino com suas reflexões íntimas. Na silhueta da tarde morna, entre os ventos roçando suas lágrimas rolando feito um córrego faces abaixo, pensativa, olhava o horizonte como se a olhassem de dentro para fora e lhe via refletida em si mesma. Um breve portal reflexo num espelho enferrujado. Uma triste poetisa vencida pela estesia do tempo vazio!
  O tempo lhe havia roubado à beleza, os amores, as cores vibrantes, a vivacidade, os costumes de mulher arredia, os fogosos bailes, os amantes secretos. Às vezes, estragulada pela mórbida solidão, arrumava as cortinas empoeiradas, ajeitava as almofadas e pensava na ingratidão da vida. Soluçava afugentando o enorme desejo de ingerir uma dose fatal do veneno, único, sólido e eficaz. Chegava a sentir o aroma lírico a lhe ferir as mandíbulas como se as gotículas amargas ao decapitá-la a vida permitissem sentir o voo das gaivotas sobre o mar imaginário, as asas livres, soltas, batendo contra todos os ventos cruciais ou lhe permitisse pousar , vagarosamente ,sobre um enorme jardim repleto de crianças inocentes e  felizes. Seria assim a visão da morte?
   Sua vida de amores perversos, salientes, clandestinos; erros inconsequentes, desses que levam o indivíduo ao fundo do poço ou numa tristonha melancolia, resultando em depressão aguda. Pensava atordoada, deixaria apenas erros e agonias que atropelam as pessoas e a cidade, cúmplices desta tragédia humana que a todos, às vezes, comovem ou apenas crucificam a mulher e seus devaneios perversos? Cairia eternamente na boca do povo... Os erros, lamentavelmente, não seriam esquecidos na cidadezinha pacata. Que triste miséria humana, deixaria esses dissabores amorosos, suas frustrações cotidianas, como herança involuntária? Passaria assim, na vida, desapercebida?
    Scarlet, depois dos seus oitenta anos de vida, cheia de aventuras, poesia, loucuras, desprovida de bens materiais, almejava deixar uma única herança para os netos. Sua figura, embora envelhecida, não era  nada  frugal para que os netos pudessem guarda-la na parede da memória  como relíquia de uma velhinha sentada  numa cadeira de balanço, fazendo tricô ou crochê ;  ou aquela pequena idosa  com seus óculos bem grossos tecendo costura em sua velha máquina!... Nada desses dotes do pedestal e da  sentença da idade lhe refletiam como metáfora do envelhecimento. Scarlet possuía todos esses dotes, mas era poetisa , dessas que amanhece sobre suas folhas brancas e com as mãos trêmulas,  compunha versos e sonhos como se fossem restituir vidas... Vidas alheias e a sua própria vida!... Passou refletida na possível herança, por longas noites, até que,  num dia cinzento anunciando chuva, prestou atenção  nuns ruídos vindos do sótão, esquecido em meio à bagunça, eram os ruídos da velha máquina de costuras. Ficou atenta, pois todo o cômodo exala  um silêncio profundo. Olhou sorrateira e atentamente  a velha máquina e de súbito lhe veio à mente a ideia de  emendar os retalhos de pano. Eram restos de todas as cores que ao longo do tempo foram ficando estendidos no chão nu de taboas rústicas.
  A tarde caía, num crepúsculo cinzento e triste. Os pássaros , em revoada voltavam  aos ninhos e a velha máquina, manipulada pelas mãos trêmulas de Scarlet ia remendando,  sutilmente,  os retalhos,  panos de todos os tons que  ao serem emendados formariam uma linda colcha de retalhos. Scarlet pensava enquanto costurava: as cores representam sua vida -  os vermelhos escaldantes são como os dias de famosos bailes em que a mulher seduz. Encantava ao roçar-se, sensualmente, aos  charmosos cavalheiros. Cada retalho representa um pedaço de si própria  e,  costurando-os,  formava e emoldurava  a sua vida!  O pálido cinza, sozinho, abandonado assemelhava-se  à tristeza de seus dias, escorrendo como as águas desembocadas num mar sem retorno; seria como a garça em seu voo rotineiro de encontro aos filhotes aquecidos num sótão qualquer. Ó!...O vermelho sempre insistente, predominante, como os bailes, os belos cavalheiros e a música a  renovar as esperanças e expectativas; às vezes o roxo também necessário às tonalidades, simbologia de um luto, dos quais sempre esteve ausente, já que a morte tão naturalmente,  é a coisa mais certa. 
Para que tantas lamentações? Achava isso um tédio, a hipocrisia em algumas reclamações, mas presenciara o luto de uma dor imensurável, tal qual se perde a vida plena de gozo. E quando percebia,as doloridas lágrimas ensopavam as rugas trêmulas. Pensava: velórios são todos iguais, só mudam as personagens.  A ferida entreaberta, no espaço do peito esquerdo,  rompe-se  com a navalha cortante na despedida com sabor de sangue estilhaçado nas retinas quase cegas ao tempo. O tom metálico é o resplendor das baladas, o sol escaldante neste amarelo e no verde das esperanças de um pobre poeta brasileiro sem fama... Que importa aos brasis os seus poetas anônimos?... O branco existente em qualquer situação, retrata a bandeira da paz! E tudo termina em um azul, num indo e vindo infinito azul  da cor do mar!
  A colcha está pronta! O silêncio da noite é arrebatado pelas ondas do mar!...Lá longe, impermeada pelo soluço de su’alma plagiada nas recordações do passado... retalhos de um tempo vivido e um futuro certo!  Neste momento,  mistura-se ao som do mar e às gotas pesadas da chuva forte, parecendo uma prece murmurada em desalinho comovendo Scarlet. Os ruídos da velha máquina de costura, por certo, cessaram ,como cessam as chuvas barulhentas e até o amor platônico.Solene, a poetisa e seus medos perversos... Da solitária escrivaninha vê a morte de forma poética e  lírica. Os restos mortais seriam jogados em cinzas sobre o mar de Marataízes? Entre as mãos trêmulas,segura firme e convicta, a única herança que deixará para os netos. Uma colcha de retalhos, costurada por ela mesma, no cio da saudade tecida nas vísceras , já tão serenamente  dilaceradas pela dor e pela solidão.Mas essa dor e solidão lhes  são , necessariamente, companhia.
Scarlet enrola a colcha num ritual silencioso.  Ouve-se,  lá fora,  o pio sorrateiro do Iambu , prelúdio da morte do dia indo desfalecer ao entorno do mar. Seria uma das tantas réplicas de despedidas. Um cenário que até Scarlet já acostumava sentir como um adeus poético de  quem se despede da arte de descrever a própria missão. No  momento da entrega da única herança, seria inevitável um choro de despedida, uma lágrima estirada ao vento, sem grandes denominações domésticas. Apenas um ritual lírico deixado em marcas e cicatrizes nas cores da vida vivida e da colcha de retalhos . Deixaria, ali mesmo, a colcha e os sentimentos, todos emendados, costurados, tecidos  na vivência. Por certo, o neto mais velho a encontraria, alguns anos depois... Não se sabe,   há quanto tempo? Junto à colcha de retalhos, restos de tecidos de todas as cores formaram a sua vida agregada de valores éticos  e poéticos na decadência do anonimato inconsequente. As cores são representatividades de uma nobre existência plebeia, rastreada pela poesia.
 Sorria um riso desbotado e pensava: será que o neto mais velho entenderá a simbologia de cores ou de colchas de retalhos? A deixou, ali, nas entranhas do sótão, ajuntada a um encardido papel amassado, desfalecido pelo tempo, contendo um poema tal qual seu estado de espírito lírico encenado, imortal e intitulado:
Doloroso dever
Anuncia, por favor, que tal dia numa derradeira hora, eu fiz a passagem.. .
Que ninguém mais vai me falar, nem ao pior me ouvir,
Nada de choros, lamentos, rezas, nem questionamentos.
Avise aos amigos mais chegados, aos parentes queridos;  mas, por favor, coloque um aviso bem diferente, aos companheiros de poesia e trovas, às amigas íntimas e às parceiras de vinhos,
Mas fale de forma justa: A poetisa partiu! Diga que não houve “causa mortis”.
Nenhum diagnóstico técnico foi procedido, Portanto,  sê  natural , sem dramatizar...
Nada de  choros, nem velas, nem rezas...
Nem anúncios entristecidos ao som de Ave-Maria Penses  numa música latente , fervente , que tocará aos meus ouvidos uma serenata flamenca.
Quero cor, música e batons coloridos na minha boca que requer um símbolo diferente, que disfarce qualquer tristeza.
Aos que perguntarem a causa, disfarças ou ri e dize que apenas não sabe ao certo, se, no entanto, ao todo for impossível, de forma bem discreta diga que morri de amor...
Que estou morta de paixão...Assim morrem os poetas!...
Junto ao bilhete deixo-te a colcha, sobras de tecidos de todas as cores, costurando-os, foram formando a colcha, pedaços de cores, pedaços de vida. Cores alegres e tristes. Ó...a colcha subia e descia ao costurar, como a vida e a poesia e deposito nas tuas pequeninas mãos , como lição de vida!
Neto-filho, mais que filho, como a vida, a colcha tem erros que consertamos ao costurar, mas na vida nem sempre há remendos, nem sempre há consertos. Deixo a colcha de retalhos, a poesia e o perdão pela vida inconsequentemente lírica e cheia de erros. Lamento, meu neto, não deixar nada mais que uma modesta colha de retalhos, a poesia me bastou!

 Assim,Scarlet balbucia as últimas palavras e cerra as pálpebras trêmulas.

Bárbara Pérez.