segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

PATRONA DA CADEIRA 11 AMALETRAS

Quando morre uma pessoa, para onde vai tudo que ela sabe? Esta frase ouvida de um personagem de novela, cujo título não me lembro, propicia-me refletir, quando é o caso, como o caso é, o da morte de Beatriz.

Quando a chamava não só Beatriz, mas Beatriz Abaurre, ela ria divertida, porque o nome de família, por positiva gozação, eu o pronunciava bem cheio e mais compassadamente. Na escrita, não dá para traduzir, só imaginar. Ria sempre, aquele riso que a caracterizava, sorriso bem largo, igualmente divertido, cujo ressoar ainda repercutirá  por muito tempo aos meus ouvidos.
Com a familia no dia do lançamento
de sua biografia
Obstinada, esguia, inteligente, destacou-se sempre, não só pela projeção social alcançada, mas pelos dotes musicais e artísticos dos quais era dotada; quando por mais de uma vez presidiu o “Conselho Estadual de Cultura”, função que levou às últimas consequências, lutando por manter íntegro o entorno do “Penedo” na Baia de Vitória e dos diversos monumentos tombados em todo o Estado. Foi nesse tempo que nos aproximamos, visto que eu dirigia o Centro de Apoio do Ministério Público que trata do ambiente natural, do patrimônio histórico e artístico. Lá, chegou a passar longas horas de diversas tardes, trocando ideia e valendo-se do mesmo apoio que lhe podia dar, nas lutas que abraçava.

A perda do único filho varão causou-lhe aquele baque terrível que provam todas as mães, em igual circunstância, até pela forma trágica com que aconteceu. Mas se afirma que foi exatamente tal tempo de dor a despertar nela, a excelente escritora e poetisa que se revelou e que desde então não parou de produzir.

Com Wanda Alckmin e sua biógrafa,
Maria do Carmo Schneider
Falava sempre com orgulho das três filhas, Marta, Heloisa e Patrícia. Bem custodiada pelo marido, embora não se caracterizasse como aquele tipo de mulher que carece de tanto, antes, era muito bem senhora de si, independente no intelecto e até financeiramente.

Ao lado dela, ingressei na Academia Feminina Espírito-santense de Letras. Desde então, nosso convívio foi muito próximo, ao ponto de me sentir particularmente distinguida com particular afeto seu. Antes, na sua plena forma, depois, quando foi sucumbindo aos poucos, o que ela mesma contava. O longo período, que a manteve sob tenso cuidado médico, impediu-me de vê-la o que não aconteceu sem sentido lamento da minha parte. Tivemos apenas uma conversa ao telefone. Agora, se é possível saber, ela bem o sabe que não foi porque não quis.

Permanece lá bem no alto, no alto da Ladeira “Sagrado Coração de Maria”, um apartamento, mirante de esplêndida paisagem, na qual se incluem, as barcas ancoradas no Iate, a ponte e a Ilha do Frade, a Ilha do Boi, a Terceira ponte, o contorno do canal com seus edifícios de apartamentos, a Curva da Jurema, todos, agora privados de um olhar cotidiano que lhes era projetado em êxtase, mas que também enchiam de beleza a alma de Beatriz. Naquela mesma morada, um piano na sala se calou, a viola não saiu mais do seu estojo, debruçada sobre aquela mesa, não se vê mais aquela mulher inteligente que disparava versos e escrevia contos e crônicas, estruturava e editava livros, depois publicava.

Não se disque mais aquele número de telefone que emudeceu, não se conte mais com o concurso daquela personalidade bem dotada, capaz de fazer tanta coisa acontecer, não a chamemos mais pelo nome, não virá nenhuma resposta, mas seu legado grande e valioso nunca deixará de ser subsídio, de modo que tudo o que sabia permanece à disposição de quantos precisarem e dele se quiserem valer.

É assim, tudo tem seu tempo, as pessoas também. À sua hora, cada pessoa é a única capaz de dizer, já vou, sejam quais forem as circunstâncias, o fato que a determinou.

Elza Souza Lima será titular da Cadeira 11 AMALETRAS
que tem como Patrona Beatriz Abaurre


Crônica de Marlusse Pestana Daher

PATRONA DA CADEIRA 12 AMALETRAS

Doralice de Oliveira Neves

Hoje, 26 de janeiro de 2011, faz trinta e um anos do falecimento de minha avó, Doralice de Oliveira Neves. Constato, com alegria, que o site “Morro do Moreno”, administrado por Walter Aguiar Filho, da Casa da Memória de Vila Velha e da nossa Academia de Letras Humberto de Campos, publicou alguns escritos de autoria dela. O que é uma bela divulgação, porque desde aqui de Vila Velha o site http://www.morrodomoreno.com.br/ presta excelente serviço na divulgação das coisas e tradições locais.

A propósito de minha avó, escrevi sobre ela dois textos: um publicado na Revista da Academia Espírito-santense de Letras, edição de 2006, (“Doralice de Oliveira Neves, literata, educadora”); o outro ("As Lendas Capixabas de Doralice de Oliveira Neves"), publicado no meu Estudos de Cultura Espírito-santense, de 2005 - livro este que, aliás, dediquei a ela e que vem a ser a fonte do Walter. Neste último texto, após um estudo que tem intenções de crítica literária, reproduzi alguns de seus escritos que tenho em meu poder. Estes mesmos que agora estão sendo divulgados.

Minha avó, nascida em Cambuci (São Fidélis), no Rio de Janeiro, em 1900. Professora formada, veio mocinha para o Espírito Santo onde, em Santa Leopoldina, na casa de seu irmão Sebastião de Oliveira, coletor federal, conheceu meu avô Getúlio Neves. Casaram-se, tiveram filhos, enviuvou depois de dezoito anos de matrimônio (meu pai tinha então de sete para oito anos de idade), e aqui mesmo veio a falecer, em Vitória, em 26 de janeiro de 1980. Nesse meio tempo uma curta passagem por Belo Horizonte/MG, para onde se mudara o filho mais velho logo após o casamento.

Foi educadora e foi literata. Ajudou a organizar a Academia Feminina Espírito-santense de Letras, que por diversas vezes reuniu-se em sua casa. Quando da reorganização do grêmio, em 1992, foi homenageada com sua indicação para patrona da cadeira n.º 10, hoje ocupada pela Acadêmica Jô Drumond, minha confreira na Academia Espírito-santense de Letras.

Deixou muita coisa escrita, pouco publicou – só textos em jornais locais. Quando tomei contato com alguns de seus escritos, que me vieram ter às mãos, dediquei-lhe o primeiro texto que publiquei na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, no n.º 54, de 2000, chamado “Tentação e Virtude: os costumes da terra nas palavras dos primeiros Jesuítas”. Na dedicatória, à guisa de epígrafe, registrei: “À minha avó Doralice de Oliveira Neves, cujas ‘Lendas Capixabas’, infelizmente inéditas, referem-se também a padres e índias. No ano do centenário de seu nascimento, e dos vinte anos de sua morte”.

Essas lendas e mitos, como disse, teci-lhes um bosquejo de intenção crítico-literária naquele “Lendas Capixabas de Doralice de Oliveira Neves”. Constatei que a autora lançava mão delas como instrumento para instrução de jovens (expediente que usava comigo também); constatei se tratar, essas lendas e mitos, de estilo literário de uso raro por aqui. Referi seu interesse pelo protagonismo feminino e esmiucei o caráter psicológico das suas personagens, sempre vergadas pelo fardo pesado da existência, metamorfoseadas pela paixão, por sucumbir a um amor proibido. É o caso, por exemplo, das passagens referentes à “Primeira Mãe Capixaba”, ao “Urutau”, ao “Frade e a Freira” - esta última de domínio público. Até sobre recursos de estilo de que a autora lança mão para compor suas histórias comento naquele texto:

“A orientação mítica que Doralice imprime a seus textos é externada não só pela citação de entes a que empresta um caráter sobrenatural – Céu, Divina Morada, Mosteiro – que substantiva; Senhora do Céu, Virgem da Terra da Cruz, Gênio Criador, mas também pela atribuição de um caráter absoluto a emoções e sentimentos, tais como o amor e o ciúme que, por isto mesmo, grafa em seus textos com maiúsculas, numa verdadeira alusão a recursos do Simbolismo. Na verdade, tais emoções e sentimentos os faz quase como se não fossem forças psíquicas, atuando de maneira determinística na condução do destino de suas personagens que, nos exemplos estudados, estão sempre vergadas sob o fardo pesado da existência. Quase como o titanismo atemporal de um Miguel Torga, que não deixa de lançar mão de um moralismo medievalesco na construção narrativa do destino de suas personagens.”

Mas todos esses comentários podem ser consultados, de forma aprofundada, nos textos a que me referi acima, que aqui não é o que pretendo desenvolver. Um dos fatos de que me orgulho com relação a ela é que minha avó era uma educadora nata, coisa que vai ficando rara hoje em dia, e toda sua vida foi devotada a essa tarefa. À educação como ocupação, à criação e ao encaminhamento dos filhos como missão - empreendimento este que, pela morte de meu avô, coube a ela sozinha.

Gostava muito quando vínhamos de Colatina, onde eu morava na época, à sua casa em Vitória. A de que me lembro era na Ilha de Santa Maria. Era uma casa de vários cômodos, com direito a mangueira no quintal, e que dava fundos para um modesto curso d’água. Ali eu tentava pescar escondido, no que era sempre impedido pelos mais velhos, ao argumento – corretíssimo - de poluição das águas (a CESAN ainda não cuidava fazer de Vitória, à custa do trânsito, a primeira capital com 100% de esgoto tratado). Gostava também de ir desde a casa dela, margeando o mesmo curso d’água, ladeando moitas de mato, até a casa de meu tio Sylvio, atrás do Colégio Salesiano. Como as coisas eram longe então...

Na casa de minha avó havia livros, que eu, criança, gostava de folhear. E quando ela estava por perto, sempre com explicações a respeito de tudo, de um jeito que tornava atraentes os fatos. Lembram-me, também, as conversas que tínhamos nas tardes então calmas na varanda de nossa casa em Guarapari. Ali trocávamos idéias sobre história, sobre mitologia, sobre literatura infanto-juvenil, que era o que eu conhecia na época. Acho que foi assim que travei o primeiro contato com o padre Anchieta, com o frei Pedro Palácios, com as festas religiosas e populares daqui, com os piratas na baía de Vitória, com os tesouros do subterrâneo do colégio dos jesuítas, até com alguns rudimentos do dialeto pomerano, de que ela se lembrava ainda, de suas aulas nas escolas do interior.

Crianças, tínhamos queixas dela sim, e ela de nós. De fato não gostávamos que ela comesse só as puãs dos caranguejos, deixando as pernas para nós - o que meu pai, de forma irritante, relevava; não gostávamos que ela, jogando buraco, escondesse cartas debaixo da almofada da cadeira para dizer que tinha batido. Eu até que deixava para lá, mas minha irmã, que era mais nova, roubava dela também...

Minha avó é hoje em dia nome de rua, no Bairro Maria Ortiz, em Vitória. A cidade em que viveu quase toda a vida e em que veio a falecer, faz trinta e um anos, a homenageou há tempos, dando seu nome a um logradouro público. Registro aqui o CEP da rua, para quem eventualmente querendo passar por lá possa se localizar: 29070-690.

Deixo, também, os links para o site Morro do Moreno, que foi o pretexto inicial para todas essas lembranças. Com um agradecimento ao amigo Walter Aguiar Filho e a certeza de que um pouco de beleza, de leveza e de encantamento, como minha avó sabia passar com as histórias que contava, tudo isso nunca é demais. 

Pelo neto Acadêmico Getúlio Pereira Neves, da Academia Espirito-santense
 de Letras, Presidente  do IHGES

Na cadeira 12, tomará posse a Advogada e escritora, Tânia Mara Silva Neves, neta da homenageada.