domingo, 18 de maio de 2014

O PORTO DE SÃO MATEUS

O navio apitou ao longe
e a cidade se agitou.
O Miranda ou o “Loid”,
fosse o que fosse,
sua chegada
era sempre uma festa.

Âncora ao fundo,
atracou a nave.
Surge o comandante,
alguém da tripulação.

Surgem também os Senhores,
ternos de linho branco
vestidos.
Damas em “taieur”,
chapéus na cabeça,
saltos finos de sapatos,
impecáveis.

Em terra, os Coronéis,
                  Alferes,
                  Majores,
                  Intendentes,
Por seu turno, os Prefeitos,
Interventores talvez.

Naquele tempo...
E dos porões,
emergem primeiro,
odores,
suores,
clamores
do negro que subsistiu.

Traz na pele,
A cor da não esperança,
Na cabeça,
A lembrança da terra de África,
                                dos gongos,
dos maculelês,
do tambor,
do tocador,
do estupor,
da terra árida,
causticante e deslumbrante,
sedenta, avarenta...
mas sua terra!

Estão acorrentados pelo pescoço,
ligados,
manietados.
Vão servir na plantação,
Nas casas dos Senhores,
Às Sinhás, às Aiás.
Mas há sempre luz,
Mesmo nas trevas.
E num recanto
de rio,
ou de fonte,
como astro,
nasceu Zoroastro.
Como nasceu?
na casa de farinha?
no paiol, quem sabe?
Na cabana,
nasceu Zé de Ana.

Seus avós foram escravos,
escravos seus pais,
eles mesmos escravos seriam
não fosse a bondade
(hodiernamente posta em dúvida),
de candidata a Rainha,
que assinando a Lei Áurea,
à sua raça inteira
para sempre,
liberdade deu.

E Zoroastro cresceu,
e Zé de Ana cresceu
e dos seus,
cada um aprendeu,
o folguedo da marujada.
E saíram cantando,
ensinando aos de depois,
embaixadas, prisões,
repetem até versos
de Gil a Camões.

Um tanto mais novo,
canta jongo o Geraldino,
pelas ruas desertas
do velho porto,
de ruas estreitinhas,
de casarões a morrer,
onde passeia meu pensamento
que exulta em rever
reabrir-se o largo do chafariz
de um menino
que permanentemente vela
e carrega
lata d’água na cabeça...

Com fé em Deus,
dias se foram,
mas dias virão
e o comércio vai  fervilhar de novo,
de novo, a população vai descer
e na curva do rio,
vai aparecer,
a mesma esperança
daquela
de quem espera e sempre alcança:
a meta,
a vitória,
a glória,
dos casarões,
dos luares,
dos lugares,
porque voltarão a soar hinos
e fará de novo a história,
o PORTO DE SÃO MATEUS[1].




[1] Este poema, escrito há mais de trinta anos, abre o livro OS ANJOS NÃO FAZEM ARTE.




EUCARISTIA

Ó que pão, ó que comida,
ó que divino manjar
se nos dá no santo altar
cada dia!

Filho da Virgem Maria,
que Deus-Padre cá mandou
e por nós na cruz passou
crua morte,

e para que nos conforte
se deixou no sacramento
para dar-nos, com aumento,
sua graça,

esta divina fogaça
é manjar de lutadores,
galardão de vencedores
esforçados,

deleite de namorados,
que, co'o gosto deste pão,
deixam a deleitação
transitória.

Quem quiser haver vitória
do falso contentamento,
goste deste sacramento
divinal.

Este dá vida imortal,
este mata toda fome,
porque nele Deus e homem
se contêm.

É fonte de todo bem,
da qual quem bem se embebeda
não tenha medo da queda
do pecado.

Ó que divino bocado,
que tem todos os sabores!
Vinde, pobres pecadores,
a comer!

Não tendes de que temer,
senão de vossos pecados.
Se forem bem confessados,
isso basta,

qu'este manjar tudo gasta,
porque é fogo gastador,
que com seu divino ardor
tudo abrasa.

(...)


In: ANCHIETA. Poesias: manuscrito do século XVI, em português, castelhano, latim e tupi. Transcrições, trad. e notas M. de L. de Paula Martins. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade, 1954