sexta-feira, 23 de maio de 2014

MEU CRICARÉ

Nessa tarde, o quanto mais pude, em pé no cais do antigo porto, aproximei-me dele, meu Cricaré,  rio que desliza lentamente e faz curvas em  
verso e prosa decantadas, antes de chegar ao mar.
Foi a placidez de suas águas a lhe fazer valer o nome “Kiri Karé” que significa “rio de águas calmas”, na língua Tupi, língua cujo direito de uso como nossa, nos foi arrebatado. O pseudo descobridor impôs-nos o Português que mesmo sendo “a última flor do Lacio, inculta e bela” na expressão de Bilac, era a dele e não a que o povo indígena que aqui já habitava, falava de há muito tempo. Como continua manso e continua belo o meu rio!
Naquele exato momento, um pequeno barco a vapor passa à jusante singrando-o e deixando na superfície espelhada, ondulações semelhantes às marítimas que se desfazem ao esbarrarem de encontro a margem, junto a mata ciliar de verde intenso, do outro lado se contorcem como em remoinho, mas é curto o tempo do qual precisam para logo se recompor.
Quedo-me em contemplação, as águas que passam a cada instante não são mais as mesmas que vejo, mas outras que ao mesmo tempo tomam o espaço deixado, sendo substituídas por outras que chegam. É impossível distingui-las pela forma, ou origem, cor ou intensidade que demonstrem, prossegue acariciando-se com ternura, na mais absoluta harmonia, o caudal que não se cansa, não afrouxa o ritmo que ostenta, ansioso pela consumação plena do encontro com o mar,  momento de espetáculo que acontece na belíssima Barra Nova.
Quantas e quantas gerações já terão feito o mesmo que eu, já terão provado da mesma magia e desembocado em fascinação indescritível só possível, se o caminho empreendido é feito nas asas da poesia.
Certamente, é sempre um encantamento mirar tal paisagem que mão humana nenhuma será capaz de repetir e, se tenta, como é o caso de quem pinta um quadro, carecerá de outros elementos ou agentes que lhe deem suporte.
É a terra que produz toda matéria prima: da forma em madeira que recebe a tela, do pincel e da tinta, antes de a mão humana fazer surgir o retrato.
Não se pretenda, pois, que meu perdão perdoe, se direito tenho a tanto, quem egoisticamente constrói irregularmente, desfaz o que não pode refazer, ou impede a todos o direito de tal visão, mas igualmente, não me deixo atormentar por lembranças, meu rio de águas calmas! Entro e saio, parto e volto, mas se estou presente (mateenseando), com a sensação de que minha visão nunca se interrompeu,  faço absoluta questão te ver.

Marlusse Pestana Daher

Em São Mateus, 28 de julho de 2012