quarta-feira, 17 de agosto de 2016

FANTASIA


Conto de Elza Cunha,  
publicado Escritores do Brasil, 1981.

Numa clareira imensa, formada por relva macia e verdejante, que cintila sob tênue luz solar, Ninfas, vestidas em suas túnicas diáfanas, bailam suavemente ao som de harpas eólias. Contemplando-as, nosso olhar paira, perturbado, pelos meneios sensuais daqueles corpos esculturais, visto através da transparência das gases de suas vestes esvoaçantes. Ao bailar, possuem o encanto, leveza e elegância dos cisnes, em seus vôos sutis. Formam, por assim dizer, um grupo harmonioso, misto de encantamento, volúpia e pureza. A comoção, o deslumbramento transportam-nos a paragens incógnitas!...

As Ninfas se voltam surpresas à aproximação de Eólo que, em galanteios, voluteia até roçar em suas leves túnicas. De soslaio, acena para uma das beldades. Esta, sem perder o ritmo da música, sempre a bailar, acompanha-o. Suas companheiras, entretidas, magnetizadas pelo bailar sonhador, não percebem seu afastamento.

A certa distância, Eólo, confiante, profere: - “Vem comigo! Não temas os ciúmes de Fauno, ele compreenderá. Não quero arrebatar-te. Sou apenas o amante incondicional da natureza, no que se concebe de mais altruístico. Para realizar o meu desejo, necessito da contribuição de tua imarcescível beleza! Vou conduzir-te a um lugar de grande encanto, talvez ainda por ti desconhecido. Encontro em ti a parte integrante, insofismável, para a perfeição do painel consagrado à nossa mãe: A Natureza.”

Enlaçando-a pela cintura, levou-a, qual pluma, a voar, a voar...

Neste voo esplendoroso, tudo lhe causa admiração. Vê miríades de borboletas de variegadas cores, refulgentes ao sol. Tão juntas voam, que formam uma nuvem irisada, qual pálio divino, a proteger-lhes as cabeças. Ela sorri encantada, enquanto sua longa cabeleira tremula ao vento, para depois cair em cascatas sobre os níveos ombros nus. Chispas eletrizantes, desprendiam-se de seus cabelos, quais partículas de ouro, confundindo-se com o brilho singular do diadema de pérolas, que lhe cingia a fronte, dando majestade e realce àquele rosto de linhas tão puras!...

Chegaram, enfim, ao lugar colimado, no alto do monte. Uma árvore frondosa e solitária, de ramos flexíveis, parecia aguardá-los, acolhendo-os na sua sombra encantada. Entrementes, ouve-se gorjeios de repassada melodia. Eram pássaros que, pousados nas árvores, entoavam hinos de amor e louvor aos recém-chegados. Ficam ali parados, enlevados, a ouvir aqueles cantos de ternura e magia, embevecidos também ante a paisagem que se descortinava.

Depois, já refeitos, notam as múltiplas borboletas dispersas, que assentadas, se misturam com as flores silvestres, formando um tapete de colorido indescritível. Era como se fora a réplica do paraíso!

Eólo, entre soberbo e comovido, dirige-se à Ninfa que, cada vez mais atônita, tem os olhos ávidos, como a querer abranger tudo a um só tempo. – “Aqui, nos sentimos mais próximos do céu! A nossos pés, tens a pródiga e fascinante natureza! Repara lá embaixo. O rio corre a marulhar colóquios de amor, tendo como leito raros nenúfares, e como proteção a sombra desta majestosa e milenária floresta. Que artista poderia dar, com o seu pincel, o toque mágico ao verde intenso destas folhagens? Àqueloutras, folhas novas de cor avermelhada...”

A Ninfa exclama: “É tudo extremamente belo!...”

Retorquiu Eólo: - “Ainda não é tudo. Contempla o porte altaneiro daquele jequitibá à distância, qual sentinela do infinito! Não analisaste um detalhe. As nuances que a vista nos ofererece derivam, por certo, das incontáveis variedades de árvores componentes desta floresta. Entre outras, destacam-se os jequitibás, jacarandás, braúnas, perobas, sucupiras, cerejeiras, vináticos, guaribus, e os ipês, cuja a floração multicor empresta à paisagem uma dimensão de  maior encantamento.

Dizem que duendes, em busca de mistérios, se transportaram de suas casas, para divertirem-se com seus risinhos e travessuras, assustando os desavisados caçadores no seio da floresta. E mais , que, em noite de luar, brincam de “esconde-esconde”, com os sacis-pererês. Interessante essa lenda, não achas?”
-“Sinto-me no mundo da fantasia”, disse a Ninfa, quase inaudível.

Prossegue Eólo: - “Analisando esta harmonia que nos deslumbra, ela se coaduna com a orquestração da natureza em festa. Ouve o canto mavioso do uirapuru, das graúnas e de muitos outros pássaros. Este tom agudo, estridente, é peculiar da araponga, que forma certa balbúrdia com o grasnar das araras, no magnífico colorido de suas plumagens. Seguem os papagaios, as jandaias, nos seus vaivéns de festiva algazarra. Tudo isto faz parte do orquestrar que nos desperta para o belo da vida!...

Atenta ainda, à distância, o pio triste do macuco, que se aproxima do roncar soturno do mutum. Este, em compensação, semelhante a um grande pato selvagem, de rara beleza, sua plumagem tem cor preta com reflexos metálicos. Arrogante no porte, tem sobre a cabeça um topete altivo, qual coroa a indicar sua espécie imperial.
Por último, vê acolá. São os astutos macacos que não faltariam. Soltam gritos sibilinos, em intermináveis acrobacias, e estão a gangorrar no imenso cipoal pendente das árvores. Admiro-os na destreza e inteligência.”
A Ninfa suspira profundamente, estática e possuída por respeito místico que a deslumbra e confunde.

-“Agora, que tomaste conhecimento de tantas magnificências, compreenderás o por que transportei-te a este lugar.

Este cenário, de perturbadora beleza, quero que se complete, por inteiro, no expoente máximo da natureza: A tua escultural figura de mulher!...

Fauno não tardará vir a teu encontro. Obrigado! Adeus!...”. Acenou-lhe, comovido.

A Ninfa ficou , também, emocionada. Depois entrega-se ao embevecimento e êxtase. Senta-se e, de mansinho inclina-se, lateralmente, apoiando o corpo divinal sobre os cotovelos, numa postura meditativa, tendo o queixo firmado na palma da mão. Ao acomodar-se, de seu amplo decote surge o inesperado. Seus lindos e voluptosos seios, quais pomos divinos, saltam e , ao sentirem o contacto leve, nos pequeninos seixos, tornam-se repentinamente, excitados e tesos. Um frêmito de volúpia intensa estremece-lhe todo os corpo. Repete aquele roçar suave, como uma carícia. Sua boca rubra é toda  sensualidade! Tem os lábios carnudos entreabertos, hálito quente, respiração curta e seus olhos semicerrados brilham estranhos, mas infinitamente amorosos e provocantes. Em gestos lentos, desfaz-se de sua leve túnica. Fica nua!
Os zéfiros que passam percorrer seu corpo em esplêndida carícia. A sensualidade de seu corpo em flor aproxima-se ao clímax. Quanto maior era a ansiedade e pertubação, vê  Fauno. Este, ao vê-la , titubeia, a vista ofusca-se-lhe ante aquele quadro onírico, provocante e belo. Chega, de mansinho, receoso de tresmudar aquele cenário, em que a grandiosidade e apoteose da natureza estavam prestes à sublimação.

A Ninfa estende-lhe as mãos súplices, em alucinante tentação.

Dois corpos abraçados, tombam, amorosamente...

Aquela árvore solitária, de ramos flexíveis, dobra-se qual cortina misteriosa, em respeito ao ato máximo da natureza: “O Amor!...”

Ao som mavioso de uma lira sonhadora, a Ninfa abre, graciosamente, seus olhos garços e de seus úmidos lábios desprende o mais suave e inolvidável sorriso. Eis ai um quadro digno de modelo a um Canova.

Fauno, possuído de extremo carinho e compreensão, apresenta-lhe a túnica.
Com gestos lentos, já vestida, deixa-se enlaçar pelos braços de seu amado, que a conduz às suas companheiras. Ao deixá-la , Fauno beija-a, com ternura, e se afasta para a sua eterna vigilância de seus domínios.

À aproximação de alguém, as Ninfas se voltam pasmadas pela tocante beleza e felicidade que transparece no rosto de sua companheira. Depois, sorridentes e brejeiras, dão sequência ao bailado imutável de suas vidas nômades.