segunda-feira, 15 de agosto de 2016

VOU CONTAR TUDO A DEUS

Foi o que disse esse garoto antes de morrer. 
Se por um lado, as redes sociais têm contribuído para fins menos dignos, menos morais, mais reprováveis, por outro, encurtam distâncias, reavivam amizades, aproximam pessoas, levam muitas mensagens de otimismo, augúrios de bem, outras delícias. Inegável o quanto de utilidade nos favorecem.

Exatamente através delas me chega a imagem de um menino, mais um, entre os tantos refugiados da incompreensível guerra na Síria. Está ferido, sangue desce-lhe da altura do pescoço, pelo débil corpo. Não vejo, mas posso imaginar quantas outras feridas minam seu frágil corpo, quanto dilaceramento interior, quantas marcas rasgaram sua alma e a deixaram em frangalhos. Mãos enluvadas dispensam-lhe algum cuidado. Muito magro, descamisado, demonstra sentir dor e chora. Abaixo de referida imagem, uma afirmação: quando eu morrer, vou contar tudo a Deus.

Claro que tal visão me choca, claro que fico atônita e ao mesmo tempo brigando com a minha própria impotência. Eu que não tenho do que me queixar, porque se o fizer, é por puro egoísmo. O frio que faz nestes dias mesmo que não possa impedi-lo de entrar onde moro, livro-me dele, com um ou mais agasalhos, cubro-me e assim minimizo o mal estar que me causa. No entanto, tem gente que dorme ao relento. Na mesa em que me sento, ainda que quem preparou não me tenha  perguntado do que gosto ou o que gostaria de saborear naquele instante, tem sempre algo que me livra das agruras da forme. Sei que tenho praticamente tudo de que preciso, sou privilegiada e dou graças a Deus.

O pensamento daquele menino cujo nome não sei, não sei de quem é filho, nem onde neste momento possa estar, me incomoda. Eu sei que outras situações de penúria afligem outros seus coetâneos, quem sabe nem estão longe de mim. 

Outros nascem de qualquer jeito depois de suas mães terem iniciado trabalho de parto ainda de pé na portaria de uma maternidade que não atende a demanda ali. Outras são meninas e estão sendo estupradas, pelos tais padrastos, pelo filho da vizinha, pelo próprio pai, ou por irmão, ou por um desalmado qualquer.

Há ainda outros que têm os olhos esbugalhados ao olhar vitrinas decoradas onde se encontra aquele brinquedo objeto de seu grande desejo e de aquisição impossível pelo subsalário que entra em sua casa a cada mês.

Não, por favor, não morram, queridinhos, para irem contar a Deus as agruras que os afligem, as penúrias em que vocês estão vivendo. Pelas bandas onde nasceu o pequeno siríaco, há uma concepção de que se encontra Deus depois da morte, mas enquanto se peregrina por esta terra dos homens, a única opção é sofrer.

Não é verdade, Deus já sabe de tudo, Ele o olha e talvez se sinta atônito como eu, ao ver seu sofrimento, já tendo feito tanto, muita coisa e não só, dando sua vida.

Mesmo que Deus já saiba, vamos contar a Ele tudinho é agora. Vamos implorar de novo que se compadeça de você, de todas as crianças que crescem desprovidas dos direitos que lhes assistem, todos muito bem descritos nos textos das mais diversas normas específicas em todos os países e nas respectivas Constituições, como é o caso da brasileira. Vamos pedir também que se compadeça dos que crescemos e muitas vezes nos acomodamos ou omitimos, outras vezes conscientemente, fazendo o errado por camaradagem ou compadrio, quando, por exemplo, votamos em candidatos sem virtudes políticas porque alimentamos a expectativa de obter deles algum proveito que sendo por esta via, é certamente imoral.


Por tudo, pelo muito que devo, ao menos me deixe lhe pedir perdão.
  
                                                                  Vitória, 15 de junho de 2016 16:35