Fazia frio naquela noite
chuvosa de quarta-feira, o que não impediu que algumas dezenas, cinco ou seis,
de amantes da boa música cuja produção vai rareando entre nós, vez que, compulsoriamente, cede espaço aos funks e outras modernidades, com
prejuízo da língua culta, da verdadeira interpretação dos sentimentos
dominantes nas pessoas, do amor de verdade, da necessária decantação da saudade
e tradução profunda de quanto a dor dói, quando se fere o coração, não renunciassem a se deslocar dos
respectivos aconchegos em que se refugiaram para chegar ao “Palácio de
Cristal”, da bela Petrópolis, cidade de Pedro.
Que nome merecidamente
dado! Ali, tem-se revelada para quem não conhece, relembrada para quem
esqueceu, a história do brasileiro que
foi obrigado a deixar o país amado, a terra em que nasceu, com a
Proclamação da República, deixando para trás sua casa, seus amigos, muita coisa
que amava tanto, a terra onde apesar de ter desposado uma mulher que julgava
perfeita, vez que apresentada através de pinturas de artistas da terra dela,
Nápolis, na realidade, não era fisicamente bonita, ou por fora, chegando
inclusive a ser manca. E o imperador decepcionou-se a mais não poder. Mas se
casara com ela, por procuração, diga-se de passagem. O convívio fê-lo descobrir
os dons dos quais Teresa Cristina era dotada, exímia cantora, pianista, mulher
coração e aprendeu a amá-la.
O que levou aquelas
pessoas ao Palácio de Cristal, agora só no nome, pois, as paredes de cristal
foram substituídas por vidro de boa qualidade, foi a ocorrência de uma semanal
seresta que neste tempo, maio de 2016, comemora 19 anos de realização
ininterrupta.
Quem chega, recebe um
livreto com todas as letras das canções que o coral composto por cinco mulheres
e quatro homens, acompanhados de um saxofonista, um violonista, um bom de
cavaquinho e ótimo percussionista irão interpretar, logicamente, que
acompanhados pelos presentes que não resistem à provocação dos magníficos
acordes das músicas verdadeiros clássicos do cancioneiro brasileiro.
Dos tais jovens lá não se
constatavam presenças. Gente de ao menos 35 a 40 anos para cima, dominava a
plateia. Todos cantavam animadamente, muitos se levantaram aos acordes do Hino
Nacional samba, “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Neste momento, uma réplica
ou sósia da famosa Piná, destaque da Beija Flor, “cinderela negra que ao
príncipe encantou”, como cantava a escola no seu samba enredo em 1983, chamou
atenção, por ter no corpo o verdadeiro gingado do samba e nos pés o compasso do
passo certo desse entusiasmante ritmo.
Só música que toca na
alma, “Último desejo” de Noel Rosa; “Sentimental demais” de Jair Amorim e
Evaldo Gouveia entre outras.
E eis que no grande salão
já repleto de canção e poesia ecoam os acordes de “Lembranças” de Raul Sampaio
e Benil Santos: “Lembro um olhar, lembro um lugar, Teu vulto amado. Lembro um
sorriso e o paraíso que tive ao eu lado, lembro a saudade que hoje invade os
dias meus, para o meu mal, lembro afinal,
um triste adeus. Sou agora no mar desta vida, um barco a vagar. Onde está o teu
olhar, onde está teu sorriso e aquele lugar? Eu devia sorrir, eu devia, para o
meu padecer ocultar mas diante e tantas lembranças me ponho a chorar”.
E se levanta para dançar,
a cabeça mais branca por ali vista, de uma senhora que provavelmente beirava os
noventa anos, podendo tê-los ultrapassado, que rodopiou no compasso da música e
que faz levantar-se o companheiro, cabeça em neve ele também, e abraçados,
dançam e até mais de uma vez se beijam, tocados pela magia da canção, enquanto
são saudados por ruidosos aplausos vindos da plateia e do palco.
Ao último acorde, mas
ainda entrelaçados, voltam a ocupar seus respectivos assentos.
Aquele estupendo sarau
culminaria com “Despedida” de Roberto Carlos.
Francisca e Carlos deixam
a sala como todos e por impulso antes de transpor a porta de saída,
entreolham-se e se veem possuir de lembranças que remontam àqueles momentos de
mais de 60 anos passados, quando se viram pela primeira vez, na praça da
cidadezinha em que ambos nasceram, toda constituída de casas baixas, coladinhas
umas nas outras, de fachadas quase totalmente constituídas de uma porta de
entrada e duas janelas que pertenciam ao quarto da frente.
Pela porta, adentrava-se
pequena sala, seguida de um corredor lateral aos outros dois ou três quartos,
findando na copa cozinha. Aos fundos um “banheiro”.
E ali mesmo, cada um
começou a dizer ao outro o que ia lembrando.
Tamanha era a emoção que
não perceberam logo, que chovia, e foi somente momentos depois que abriram o
guarda-chuva sob o qual aconchegaram-se ainda mais e não paravam de falar.
Primeiro sentados num
divã, depois na cama daquele quarto de hotel, as lembranças borbulhavam e vez
ou outro se acompanhavam de sonoras risadas, até que já amanhecia quando o sono
os dominou.
Nunca uma noite foi tão
curta para conter todos aqueles anos de lembranças.