terça-feira, 16 de agosto de 2016

UM OLHAR, UM LUGAR


Fazia frio naquela noite chuvosa de quarta-feira, o que não impediu que algumas dezenas, cinco ou seis, de amantes da boa música cuja produção vai rareando entre nós, vez que,  compulsoriamente, cede espaço aos funks e outras modernidades, com prejuízo da língua culta, da verdadeira interpretação dos sentimentos dominantes nas pessoas, do amor de verdade, da necessária decantação da saudade e tradução profunda de quanto a dor dói, quando se fere o coração,  não renunciassem a se deslocar dos respectivos aconchegos em que se refugiaram para chegar ao “Palácio de Cristal”, da bela Petrópolis, cidade de Pedro.

Que nome merecidamente dado! Ali, tem-se revelada para quem não conhece, relembrada para quem esqueceu, a história do brasileiro que  foi obrigado a deixar o país amado, a terra em que nasceu, com a Proclamação da República, deixando para trás sua casa, seus amigos, muita coisa que amava tanto, a terra onde apesar de ter desposado uma mulher que julgava perfeita, vez que apresentada através de pinturas de artistas da terra dela, Nápolis, na realidade, não era fisicamente bonita, ou por fora, chegando inclusive a ser manca. E o imperador decepcionou-se a mais não poder. Mas se casara com ela, por procuração, diga-se de passagem. O convívio fê-lo descobrir os dons dos quais Teresa Cristina era dotada, exímia cantora, pianista, mulher coração e aprendeu a amá-la.

O que levou aquelas pessoas ao Palácio de Cristal, agora só no nome, pois, as paredes de cristal foram substituídas por vidro de boa qualidade, foi a ocorrência de uma semanal seresta que neste tempo, maio de 2016, comemora 19 anos de realização ininterrupta.

Quem chega, recebe um livreto com todas as letras das canções que o coral composto por cinco mulheres e quatro homens, acompanhados de um saxofonista, um violonista, um bom de cavaquinho e ótimo percussionista irão interpretar, logicamente, que acompanhados pelos presentes que não resistem à provocação dos magníficos acordes das músicas verdadeiros clássicos do cancioneiro brasileiro.

Dos tais jovens lá não se constatavam presenças. Gente de ao menos 35 a 40 anos para cima, dominava a plateia. Todos cantavam animadamente, muitos se levantaram aos acordes do Hino Nacional samba, “Aquarela do Brasil” de Ary Barroso. Neste momento, uma réplica ou sósia da famosa Piná, destaque da Beija Flor, “cinderela negra que ao príncipe encantou”, como cantava a escola no seu samba enredo em 1983, chamou atenção, por ter no corpo o verdadeiro gingado do samba e nos pés o compasso do passo certo desse entusiasmante ritmo.

Só música que toca na alma, “Último desejo” de Noel Rosa; “Sentimental demais” de Jair Amorim e Evaldo Gouveia entre outras.

E eis que no grande salão já repleto de canção e poesia ecoam os acordes de “Lembranças” de Raul Sampaio e Benil Santos: “Lembro um olhar, lembro um lugar, Teu vulto amado. Lembro um sorriso e o paraíso que tive ao eu lado, lembro a saudade que hoje invade os dias meus, para o meu mal, lembro  afinal, um triste adeus. Sou agora no mar desta vida, um barco a vagar. Onde está o teu olhar, onde está teu sorriso e aquele lugar? Eu devia sorrir, eu devia, para o meu padecer ocultar mas diante e tantas lembranças me ponho a chorar”.

E se levanta para dançar, a cabeça mais branca por ali vista, de uma senhora que provavelmente beirava os noventa anos, podendo tê-los ultrapassado, que rodopiou no compasso da música e que faz levantar-se o companheiro, cabeça em neve ele também, e abraçados, dançam e até mais de uma vez se beijam, tocados pela magia da canção, enquanto são saudados por ruidosos aplausos vindos da plateia e do palco.

Ao último acorde, mas ainda entrelaçados, voltam a ocupar seus respectivos assentos.

Aquele estupendo sarau culminaria com “Despedida” de Roberto Carlos.

Francisca e Carlos deixam a sala como todos e por impulso antes de transpor a porta de saída, entreolham-se e se veem possuir de lembranças que remontam àqueles momentos de mais de 60 anos passados, quando se viram pela primeira vez, na praça da cidadezinha em que ambos nasceram, toda constituída de casas baixas, coladinhas umas nas outras, de fachadas quase totalmente constituídas de uma porta de entrada e duas janelas que pertenciam ao quarto da frente.

Pela porta, adentrava-se pequena sala, seguida de um corredor lateral aos outros dois ou três quartos, findando na copa cozinha. Aos fundos um “banheiro”.

E ali mesmo, cada um começou a dizer ao outro o que ia lembrando.

Tamanha era a emoção que não perceberam logo, que chovia, e foi  somente momentos depois que abriram o guarda-chuva sob o qual aconchegaram-se ainda mais e não paravam de falar.

Primeiro sentados num divã, depois na cama daquele quarto de hotel, as lembranças borbulhavam e vez ou outro se acompanhavam de sonoras risadas, até que já amanhecia quando o sono os dominou.


Nunca uma noite foi tão curta para conter todos aqueles anos de lembranças. 



CENAS DA FAZENDA

Início de minha vida literária e correspondência com intelectuais.

Imãos e Mamãe Dona



Noite, poesia, ebúrnea claridade,

queda o ser embevecido ao luar.

Analiso enleada a sublimidade

da natureza muda a desfilar.



Ameno cenário de soledade,

bois na relva tranquilos a pastar,

habitações brancas em paridade

em pratarias se tornam ao luar.



Longe, fica o rio, depois da cachoeira

em desenfreado amor, a murmurar

canções, unificam-se em alva esteira.



Apaixonada, ponho-me a cismar.

Fugir não se pode, por mais se queira

à apoteose onírica do Luar.





" Fazenda Cachoeiro do Cravo", fundada por meus ancestrais, que passou de Pais para filhos, até minha geração, bisneta que sou do seu fundador Antônio Rodrigues da Cunha, Barão dos Aimorés.

Como uma de suas herdeiras, para não discordar da maioria dos meus irmãos concordei sensibilizada até às lágrimas, com a venda da mesma, a José Maria Fontana).




Mais um maravilhoso soneto da nossa homenageada de onde se desprende por inteiro a alma poeta.