Pe Adroaldo SJ
tade d’Aquele que me
enviou: que eu não perca nenhum daqueles que Ele me deu, mas os ressuscite no
último dia” (Jo 6,39)
Ao celebrar o “Dia de Finados”,
todas as culturas e religiões, cada uma à sua maneira, intuíram o que não se
pode dizer, ou o que só pode ser dito com muito recato: que a morte é
passagem, travessia, nascimento; que nela entramos no processo definitivo de
libertação, de transformação, de acesso à Plenitude da Vida, à Comunhão dos
santos, à Santidade de Deus...
Toda
expressão de vida flui para a morte. E o ser humano é o único animal que
sabe que vai morrer. No entanto, inventa
toda sorte de artifícios para não assumir este destino que lhe é insuportável.
Mesmo estando frente à morte dos outros, pensa ainda poder escapar desta
decisiva hora.
Esta é a
realidade dura de aceitar nestes tempos pós-modernos: a incapacidade cultural
de abordar os limi-tes, perdas, fracassos, mortes... Vivemos uma cultura na
qual a dor e a morte são expulsas da experiência humana. A morte
é distante e virtual: procuramos negá-la, escondê-la, dissimulá-la. É algo
feio, de mau gosto, algo a ser eliminado da vida cotidiana. Vivemos como se
tivéssemos que ser imortais. Quando ela está perto, nós nos afastamos dela, ou
então, ela é afastada para locais específicos.
No entanto, a vida marcada pelo medo
da morte é uma vida “em terra de sombras”, que contradiz nossa vocação cristã
de ser filhos(as) do dia e da luz.
O medo da morte impede
viver adequadamente o presente. Mais grave ainda, o medo da morte pode chegar a
escravizar-nos e angustiar-nos a ponto de impedir-nos viver a vida com sentido,
qualidade e pra-zer. Ela nos golpeia em dimensões muito sensíveis e frágeis de
nossa experiência humana.
A negação da morte sempre cobra um preço – nossa
vida interior se trava, nossa visão se encolhe, nossa razão se esconde, nossos
sonhos se atrofiam... No final, o
auto-engano toma conta de nós.
Todos
morremos, mas há mortes e mortes. Na cultura da “pós-modernidade líquida” a morte
se apresenta como termo, ruptura e aniquilação. Somente os que não viveram
seriamente, os que esbanjaram sua vida em caprichos e superficialidades, os que
semearam dor e morte ao seu redor, os que asfixiaram a vida e não se importaram
com os outros, tem medo de morrer.
Os que
aceitaram sua vida e se atreveram a vivê-la seriamente, os que a viveram como
dom que se entrega, aceitam sua morte e a esperam de modo sereno e livre, como
o descanso devido depois de uma jornada trabalhosa e fecunda. Assim como uma missão
cumprida devidamente dá alegria ao sonho, uma vida bem vivida dá alegria à
morte. Porque a vida valeu a pena, também vale a pena morrer.
A experiência cristã nos revela que,
como criaturas, somos mortais e dotados de liberdade; é por isso que nós nos interrogamos
sobre o sentido da vida; somos capazes de viver a vida como um
projeto expansi-vo e inspirador e que podemos transformar a morte no
último e supremo ato de nosso viver.
E a morte só pode ter um
sentido e significado se a vida também os tiver; quando alguém sabe “para quê e
para quem vive”, realizando sua original missão, pode morrer em paz. Aqueles
que vivem intensamente enfrentam com grande serenidade seu envelhecimento e a
proximidade da morte, vendo nela mais uma etapa no processo normal de seu
amadurecimento e de sua realização.
Aquele(a) que
é conscientes de ter vivido por alguma causa, de ter levado uma vida plena,
pode dar sentido e significado espontâneos ao último ato de sua existência, a morte.
É o modo como alguém vive que qualifica a morte. Há mortes que,
para além da inevitável dor que causam aos familiares e amigos, provocam paz,
agradecimento, vontade de viver seriamente, de se levantar da superficialidade
e da mediocridade.
Para a fé
cristã, a morte é travessia para a comunhão plena. Último passo. Por
isso, não pode ser escondi-da; antes, preparada. A fé des-vela a morte como
momento em que a pessoa se abre para dimensões nunca antes imaginadas. Assim
ela nos dá maior responsabilidade diante da nossa própria vida.
Diante da memória dos entes queridos
que já fizeram a “travessia pascal”, a morte se transforma em “boa
notícia”, pois eles(elas) se atreveram a viver como Jesus viveu. Viveram para
dar vida e morreram para defendê-la. Viveram a vida como entrega e sua
morte foi uma consequência lógica de seu modo de viver. Levaram a existência
até os limites de suas possibilidades e fizeram dela uma semente permanente de
vida. A lembrança da vida e da morte dessas pessoas continua semeando vontade
de viver com autenticidade. Elas derrotaram a morte.
De fato, o
modo de viver de Jesus recebeu o sim definitivo de Deus e nos mostra que
a vida entregue para dar vida é o caminho para derrotar a morte e continuar
vivendo. No acontecimento infinitamente doloroso da
morte de Jesus se revela e se promete o sentido último do viver e do morrer
humano.
“Re-cordar”
(visitar de novo com o coração) aqueles(as) que estão no coração de Deus é
abrir-se para a vida, não somente para aquela vida plena do mundo futuro, mas
também para uma mais profunda quali-dade desta vida presente.
Nesse
sentido, afirmar a ressurreição não é consolo ilusório, nem evasão do
compromisso com a história e com a vida. É decisão firme de continuar o projeto
de Jesus, de defender a vida onde quer que esteja ameaçada, de arriscar-se
pelos mais fracos e excluídos para que tenham vida, de viver dando morte à
morte, curando feridas, levantando corações, semeando esperanças...
A ressurreição nos faz compreender que a
travessia por este mundo não consiste em outra coisa senão no tempo da gestação
concedido a cada um de nós para que, dentro desse imenso ventre cósmico, possa-mos
aprender a viver de amor e contemplar a obra d’Aquele que é Fonte e Destino
final da vida.
A vida e a morte não
são, portanto, inimigas que se destroem; elas são amigas, irmãs inseparáveis.
Morre-se ao longo da vida. Este é o
caminho normal de morrer.
A vida é o lento amadurecer
da morte. Morre-se na vida, durante a vida,
na medida em que a morte é fruto maduro das opções de toda a
vida. As decisões fazem e farão a nossa morte. A morte nos ronda e nós rondamos
a morte. “Começamos a morrer no dia em que nascemos”.
A experiência
cristã nos revela o caminho de uma morte preparada ao longo da vida,
porque a entende em relação com a vida e a vida em relação com a morte. Viver
sem morrer é viver menos; tira a seriedade da vida (L. Boff).
Só assumida
em liberdade e ativamente, a morte se humaniza. Na fé, cristianiza-se.
Por isso, celebrar “Finados” nos faz reingressar na
vida de uma maneira mais rica e apaixonada; ao mesmo tempo, aumenta a
consciência de que esta vida, nossa única vida, deve ser vivida
intensa e plenamente.
Essa abordagem da morte leva a um compromisso maior
para com a vida, saboreando a preciosidade de cada momento e o simples prazer
de existir.
Alguém já
teve a ousadia de afirmar que a morte é mais universal que a vida;
todos morrem, mas nem todos vivem, porque incapazes de
re-inventar a vida no seu dia-a-dia. Uma vida pensada sem “mortes” perde-se, no
final, na total irresponsabilidade. E viver significa esvaziar-se do ego
para deixar transpa-recer o que há de divino em seu interior. O grão de
trigo que não morre, apodrece, e não multiplica as mil possibilidades latentes
em seu interior.
O “depois da
vida” é um grande encontro onde seremos perguntados: “o quanto você viveu
sua vida?”
Texto bíblico: Jo 6,37-40
Na oração: re-visitar e entrar em comunhão com a-
quelas pessoas que
“morreram de tanto viver”; “encantadas” no coração de Deus elas conti-nuam
sendo inspiração e referência para poder assu-mir a vida com mais paixão.