segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

TRADUZIR-SE

O poeta que morreu hoje (4/12/2016) nos faz pensar na beleza e na arte da vida vivida sem hipocrisia

Aí vai um poema para tantos que se decidem indivisíveis em partes diferentes ou mesmo contraditórias. Um poema para tantos que decidem ignorar conflitos internos, deixar de duvidar e de fazer perguntas. Um poema para tantos que decidem atacar os discordantes, imaginando-se donos da verdade universal e escorando-se em ídolos. Só os malucos têm certezas. O maranhense Ferreira Gullar (1930-2016), que há dois anos voltou a ser artista visual, criando colagens coloridas em papel de uma leveza extraordinária, traduziu neste poema as nuances da alma humana. Um poema de 1980, musicado por Fagner no ano seguinte, e que nos faz pensar na beleza e na arte da vida vivida sem hipocrisia.
"Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?"

Ferreira Gullar - "Traduzir-se"