terça-feira, 12 de dezembro de 2017

DOS AMORES DIVIDIDOS E MULTIPLICADOS

                   

Regina Ruth Rincon Caires
2° Lugar - Prosa



Arroz, feijão, mexido de ovo e farofa de torresmo. 

Tudo misturado, amassado. Isso era feito dia após dia, sempre nos mesmos velhos e descascados pratos de ágata. Cada neto era servido com esse manjar dos deuses, carinhosamente temperado de generosidade, doação, amor.

A avó compactava a comida no círculo central de cada prato, borrifava algumas gotas de limão-cravo, e com a lateral do garfo fazia uma cruz no centro, dividindo a porção em quatro partes. Dizia que cada parte era dedicada a um dos quatro grandes amores da vida: mãe, pai, avó e avô.

E, comprometidos com esses amores, cada um de nós escolhia a parte mais amada para iniciar a refeição. Quase sempre a sequência lógica prevalecia: mãe, pai, avó e avô. Raras vezes essa harmonia era quebrada, e quando isso acontecia nem precisava investigar: havia uma surra atrelada a isso. Uma surra dada ou uma surra prometida. Se bem que isso era muito particular. Se havia alguma inversão, ninguém comentava. Acontecia dentro das cabecinhas. Sei que acontecia isso porque inverti algumas vezes.

Enquanto comíamos, a avó, de longe, sempre atarefada com a lida da casa, cautelosamente controlava a nossa alimentação. Era comum ouvir:  Quem já comeu uma parte? Didi, você está sem fome? Lúcia, a comida não está boa? Faltou sal?

Ela sabia que a comida estava sempre boa. Nunca faltou sal e nem sobrou. Nunca errou a mão em nada. Ali estava o amor mais saboroso que uma criança poderia receber. Era uma cumplicidade de afetos tamanha que espantava qualquer insegurança, qualquer medo, qualquer tristeza. Era um porto seguro.

Com o passar do tempo, fui percebendo que naquela divisão faltavam partes. Havia mais dois amores a serem colocados ali, no meu prato. Meu irmão e minha irmã.

Então, sem alarde, comecei a repartir as porções do pai e da mãe, de modo a serem quatro. Ali estavam os dois que faltavam. E eu ficava feliz assim...

Fiz isso por algum tempo sem ser notada. Quero dizer, pensando não ser notada. Imagina se isso seria possível! Nada escapava da tenência sempre zelosa da avó. E um dia, enquanto eu multiplicava as minhas divisões, ela aproximou-se de mansinho e, com aquele olhar que jorrava ternura, me disse: Existem outros amores, não é mesmo, menina?!

Depois do susto, sentindo o afluxo do sangue ruborizando o meu rosto por perceber que ela havia descoberto o meu feito, e não querendo que ela se sentisse afrontada pela minha iniciativa, prontamente coloquei-me de pé. E ela, no intuito de me tranquilizar, passou as mãos pelos meus cabelos e, com a maior serenidade do mundo, me disse: Ao longo da vida, minha neta, você irá encontrar muitos amores. Alguns serão somados, outros nascerão...  Serão tantos, mas tantos, que não caberão nem no maior prato do mundo!

E ela estava com a razão...





RIVÂNIA


                               Elton Romero
3° lugar - Prosa

No país em que querem nos impingir como heróis as pessoas reclusas dentro de uma casa disputando “reality show”, é natural que não se dê o merecido destaque para quem realmente mereça assim ser chamado. Basta acompanharmos as notícias dos telejornais ou buscarmos as matérias de capa dos veículos de comunicação impressos. Deparamos com manchetes, textos e fotos deprimentes, afinal, miséria e violência ajudam a vender.

Um dia, porém, foi diferente, e despertou minha atenção. Uma imagem captada de um grande infortúnio mostrava uma linda história no meio de tamanha desgraça. Sentada em um barco e fugindo da enchente, uma menina de oito anos abraçava e salvava seus livros escolares, por ser, na pobreza em que vive, o seu único bem. Vivenciando um momento de desconforto sabia ela que o tesouro que protegia era o seu passaporte para um futuro mais digno.

        Rivânia é o nome da garota. Brasileirinha de Pernambuco, é muito pobre, tem os braços mirrados, um sorriso bonito, mora em um local constantemente açoitado por adversidades, mas nada disso impede sua ânsia de aprender. E com sua atitude a pequenina ensinou muita gente grande, despertou solidariedade, provou que nas desgraças também é possível enxergarmos grandezas. Aqueles bracinhos guardaram o seu patrimônio com tamanha devoção, que certamente o cofre forte de uma agência bancária não ofereceria maior segurança.

        Nunca mais deixei de pensar na valentia de Rivânia.

        Já se passaram meses e nada mais se falou. Na matéria da época algumas pessoas se propuseram a ajuda-la de alguma forma, uns pela comoção, outros por esperteza ou interesse político. A única verdade que temos é que no próximo ano, ou ainda neste, a cena se repetirá. Já virou rotina na vida daqueles desassistidos. Ainda veremos por muitos anos novas enchentes, novas promessas, novas tristezas, novas emoções e comoções.

        Enquanto alguns pregam mudanças através de revoluções que nunca acontecerão, resta-nos a esperança de que, futuramente, a menina ribeirinha se torne uma profissional altamente capacitada, e ajude, dentro da área escolhida como profissão, a minimizar os tormentos do seu povo sofrido. Na sua inocência mostrou a todos que revolução deve ser feita com livros para mudar as pessoas, jamais com armas para mudar regimes de governo.

        Agora é torcer para que um imenso contingente de brasileiros a imite e faça cada um, a sua revolução pacífica, sem gritos de ordem, mas com muitas palavras escritas.



 AMALETRAS 

CONCURSO LITERÁRIO "ELZA CUNHA" - EDIÇÃO 2017