Alex Giacomim Rebonato Concorrente do Curso Literário Elza Cunha
O dia amanheceu claro como
costumava acontecer no mês de abril. A fina chuva noturna, que geralmente vinha
ali por volta das três da manhã, deixava o ar límpido e fresco, possibilitando
que os primeiros raios de sol alcançassem a terra sem ter de enfrentar qualquer
resistência de poluição.
Ele não prestou atenção em
nada disso quando abriu os olhos, quase no mesmo instante em que o primeiro
galo começava a cantar, mas sabia que era dessa forma. Nunca havia sido
diferente.
Os galos, pelo menos,
ainda cantavam. Bom sinal. Mas ele sabia que o seu problema eram as galinhas.
As gordas, promissoras e bem tratadas galinhas. Vinham delas os ovos que
serviam de alimento e até como uma fonte de renda extra para a família, e ele
tinha que resolver o problema tão logo fosse possível.
Foi mais por isso, e não
por querer ignorar a implicância do vizinho Pereirinha sobre ele estar perdendo
pro lobo, que resolveu não ir à igreja no domingo de manhã. A capela sempre
fora o destino da família nas manhãs de domingo, e apesar de precisar pedir a
Deus que lhe desse paciência e serenidade para resolver o problema, também não
queria dar chance para diabo, deixando o galinheiro sem vigia enquanto custeava
sua fé nas mais ou menos quatro horas que levava entre ir e vir da missa.
Sentia falto do cachorro.
As crianças sempre
quiseram um cachorro, e ele nunca as negara nada. Claro que não iria comprar um
daqueles filhotes de raça que só comem ração cara, e custam uma nota preta.
Não, esse tipo não serviria para o serviço. E essa era uma regra que todos
entendiam e cumpriam naquela família: todos tinham tudo o que precisavam para
viver, às vezes um pouco mais, até. Às vezes, um
pouco mesmo também. Mas
todos, todos mesmo, tinham funções e tarefas a cumprir, e os filhos sabiam que
com o cachorro não seria diferente.
Conseguiu de um amigo na
venda da cidade um filhote que, segundo o dono, era meio vira-latas, meio
alguma raça boa de caça, perdigueiro ou algo assim. Sendo metade de cada,
seria, lhe garantiu, um cão de guarda danado de bom. E ele acreditou. De graça,
só se o bicho não latisse para não aceitá-lo. E era bonitinho, o bichinho,
tinha que reconhecer. Teve que dar o braço a torcer.
O pobre animal foi o
primeiro sinal de que as coisas não iam bem. Ele havia feito a casa de cachorro
próxima ao galinheiro, bem encostado no limite da propriedade, entre o início
das árvores e o cercado coberto das aves. Ele achava que ali seria o local
perfeito para o cão estar, dia e noite, caso algum animal selvagem viesse de dentro
da floresta e para lá voltasse levando consigo alguma de suas galinhas.
Sim, um cachorro esperto
na ponta de uma corrente longa poderia espantar um pequeno predador e trazer um
pouco mais de tranquilidade. Deveria, pelo menos. Mas se ele agora estava em
casa, no domingo de manhã, calçando suas botinas e com a espingarda – que
passara a maior parte da vida atrás do guarda-roupas do quarto do casal –
pendurada no ombro e carregada, Santa Mãe, tranquilidade era a única coisa que
ele não tinha naquele momento.
Ele entrou na mata
seguindo as pegadas.
Antes do cachorro, vez ou
outra alguma galinha desaparecia. Ele quase não sentia a falta. Era normal uma
telha soltar ou uma tábua despregar com o tempo, e alguma ave encontrar a saída
do cativeiro. Algumas vezes ele até as soltava e as deixava ciscando,
tratando-as como seu pai fizera com as dele em seu tempo, e ao recolhê-las no
fim do dia, também não era tão raro que alguma estivesse faltando.
Quando era filhote, as
crianças adoravam o cachorrinho, e volta e meia deixavam que ele dormisse
dentro de casa. Quase nunca o acorrentavam, e em algumas noites, quando
barulhos estranhos chegavam até a casa, vindos do interior obscuro e
inexplorado da floresta, o filhote amanhecia encolhido no tapete de entrada, escorado
contra a porta arranhada por suas próprias e pequenas patas.
Depois que cresceu - e
cresceu bastante, mais do que todos esperavam - ficou mais estabanado, e não
cabia mais dentro de casa. Então o interesse das crianças acabou, e só ele dava
atenção para o cão. Até tinha conseguido ensiná-lo a pegar gravetos, coisa que
parecia adorar tanto quanto adorava comer as sobras da cozinha.
As penas soltas terminavam
antes das árvores começarem. Já as manchas de sangue continuavam, adentrando a
nata. Não era nada absurdo como naqueles filmes que os jovens gostavam de
assistir tarde da noite, onde parecia que se podia pintar uma casa inteira por
dentro e por fora com o sangue de uma única pessoa, tamanha era a quantidade
exagerada. Não, ali as manchas de sangue eram discretas e espaçadas. Pequenas
gotas que a ave deixou escapar pelos ferimentos enquanto era carregada na
mandíbula de algum animal.
Não. Não de algum animal.
De alguém.
Ele estacou. O solo fofo
da mata era coberto por um tapete de folhas mortas, que era sempre úmido. O sol
fazia o possível para alcançar e secar o solo, mas as árvores maiores, com suas
copas frondosas, dificultavam muito sua intenção. E o solo permanecia quase
sempre, e em quase todos os lugares, fofo e úmido.
Ele pôde ver as folhas,
parcialmente apodrecidas do chão, reviradas em alguns pontos. Seu pai, quando
era jovem, lhe contava histórias do trabalho que tinha quando mais novo,
recuperando gado e cavalos roubados. Foi o primeiro contato que teve com a
velha espingarda, e, como seu pai não aceitava que ninguém sequer pudesse pensar
que ele mentia, levava-o para caçar e lhe ensinava alguns macetes para rastrear
animais e ladrões.
Uma lembrança tomou sua
mente. Quando se teve um professor rude e eficiente como seu pai, era difícil
esquecer o aprendizado. A principio percebeu o que pareciam rastros normais: um
par de pegadas vindo para sua propriedade e outro indo para a mata. Com isso
teve certeza de que não era um animal selvagem que lhe causara tanto prejuízo,
mas sim um ladrão. A certeza vinda com as pegadas encontradas começou a
encher-lhe de ódio, pois também havia aprendido com o pai que não há nada pior
nesse mundo do que os ladrões. Mas, o sentimento destrutivo foi contido quando
a velha habilidade de rastreamento guiou seus olhos para um pequeno detalhe.
Antes de esse ladrão
aparecer, ele contava cerca de 50 galinhas vistosas. Elas faziam ninhos por
toda a propriedade, e ele recolhia os ovos. Não estava nadando de braçada, como
se dizia, mas era uma quantidade boa demais para suprir as necessidades. Não
fosse esse bandidinho começar a tirar-lhe duas, até três galinhas por semana,
ele até que não se preocuparia tanto.
As pegadas que vinham da
floresta, em direção a sua casa estavam mais fundas do que as que voltavam.
Geralmente, seu pai lhe
disse, o ladrão vem leve e volta pesado. Portanto, a profundidade das pegadas,
que para um observador desatento não teria a menor importância ou diferença,
para ele causava inquietação e estranheza. O ladrão veio com algo mais pesado
do que as galinhas que levou.
Voltou em disparada para
casa.
Nele se misturavam
curiosidade, medo e até certo orgulho. Havia descoberto algo importante, mesmo
não sabendo bem do que se tratava. Procurou feito louco no terreiro, em volta e
abaixo da casa, sobre o telhado e até no galinheiro. Não descobriu nada. Seja
lá o que o ladrão estivesse tramando, ele iria descobrir.
Havia desistido de
procurar o tal peso que o ladrão trouxe da floresta e já se encaminhava para
entrar novamente na mata e seguir o rastro enquanto as nuvens não desabassem em
chuva, quando se deparou com a casinha do cachorro. O ódio que sentiu
anteriormente voltou a acometer-lhe, e dessa vez nada o conteve. Retirou do
embornal e pequena meiota de aguardente, puxou a rolha e deu um longo gole. O
calor da bebida desceu-lhe pela goela e aqueceu-lhe o bucho, como se costuma
dizer, e seus lábios se apertaram com força. Vingaria seu orgulho ferido, suas
galinhas mortas e seu cachorro desaparecido.
Ele ficou encucado. Nada
havia que pudesse ter sido trazido pelo bandido em sua propriedade. Não se
sentia seguro, e, como provedor de uma família, se sentia-se assim, então sua
família também se sentiria. Não. Na verdade ficariam apavorados.
Tomou a decisão de ir
atrás da raiz do problema. Independente do que quer que estivesse sendo
tramado, encurralar o ladrão e trazê-lo a justiça findaria seus problemas. Esse
pensamento se fixou em sua cabeça e impulsionou seus passos, que apressados
deixaram o terreiro para, enfim, adentrar a mata a procura de sua preza.
Havia percorrido cerca de
três quilômetros antes de a fome o lembrar da hora avançada, não sem reparar
nas grandes e frondosas árvores da mata virgem, apesar da concentração que
tinha em seguir os rastros. As árvores que se destacavam pelo tamanho e altura
eram ótimos pontos de referência, e ele não queria se perder, além de possuírem
rara beleza. Em um domingo normal, já estaria perto do fogão apressando
gentilmente a mulher para que terminasse a refeição, para que todos comessem e,
em seguida, sossegassem a casa com a sesta, de que tanto gostava. Mas ali, no
meio daquele ambiente totalmente novo, por mais similar que pudesse parecer com
os lugares onde esteve na infância com o senhor seu pai durante as caçadas,
teria que se contentar com a merenda que trazia no embornal. Pão, queijo, carne
de sol e água. Era suficiente.
Em um determinado ponto –
ele não sabia dizer exatamente qual – passou a seguir apenas um par de pegadas.
Aquele lugar possuía um clima determinado. Era sem dúvida um lugar maravilhoso
para se passar o fim de semana, com o sol forte e as chuvaradas robustas, mas,
para uma caminhada por uma picada dentro do matagal, o clima quente e úmido era
de matar.
As marcas dos pés
descalços que rastreava seguiam em direção contrária a que ele ia, no momento.
Estava certo de que chegaria, uma hora ou outra no esconderijo do bandido, de
onde ele partira para pilhar seus bens, embora, sem outro par para comparação,
não saberia dizer se carregava ou não algo pesado quando saiu de sua toca. Pela
profundidade, ainda achava que sim.
O suor ensopava sua roupa,
e ele aprendera também muito cedo que o sol castiga, mas você só perde pra ele
se não beber água. E havia, logo adiante, um pequeno riacho. Sabia disso tanto
por já poder ouvir, mesmo que bem distante, o barulho da água correndo, mas
também porque esse riacho nascia bem a cima da estrada da venda e adentrava na
mata logo antes da entrada para a sua propriedade. Uma ponte de madeira, velha
como o tempo, foi construída para que os pequenos proprietários pudessem
economizar um pouco os passos quando fossem comprar seus mantimentos no único
estabelecimento comercial que havia por aquelas bandas, e ainda estava lá,
rangendo reclamações sempre que alguma carroça ou cavaleiro passava por ela.
Bebeu o máximo que pode do
cantil. Poderia enchê-lo quando chegasse ao riacho.
Havia uma pequena
depressão cavada nas pedras por onde o córrego corria. Não era muito profunda,
embora ele soubesse que, em um mês de muitas chuvas, a água poderia subir até
onde ele estava, sobre a margem. Barrancos de cerca de dois metros flanqueavam o fio d’água
que descia livremente sobre as rochas. Como, pelo menos naquele ponto, o relevo
não era muito acidentado, ele pôde ver, ao descer pela encosta, alguns bolsões
que se formavam, contendo água cristalina e uma diversidade de seres aquáticos.
Enquanto enchia seu cantil
com a água pura teve tempo de mais um devaneio, curto, até, mas que sempre lhe
acometia quando a natureza, sem qualquer intervenção humana, lhe fornecia o que
necessitava. Não conseguia entender, de forma alguma, como as pessoas na cidade
podiam despejar seus dejetos nos rios, e recolher água desse mesmo rio para
suas tarefas diárias. E ainda por cima, gastavam recursos e dinheiro para
tornar a água que contaminavam, boa novamente. Quando fez a fossa que
utilizavam atualmente em casa, teve que cavar cerca de nove metros, e como não
encontrou água, fez ali a casinha, como seus filhos chamavam. O pessoal mais
estudado disse que isso era errado, e falavam de boca cheia que o certo seria
encanar o esgoto, que isso era mais higiênico e não agrediria um possível
lençol freático, como eles chamaram. A discussão sempre terminava quando ele
punha seu pensamento em pauta: como, mesmo com tanto estudo, eles podiam se
preocupar mais com a água debaixo da terra que não podiam ver e que nem
estivesse lá, e achar que encanar o esgoto e despejar no rio aberto que todos
podiam ver poderia ser mais higiênico? Ninguém, nunca, teve resposta convincente
para isso.
Ao chegar nessa conclusão,
deixou-se avaliar sua situação. Estava em uma sinuca de bico agora. Voltar não
traria resultado nenhum, mas não podia simplesmente ir em frente. Trilhas que
chegavam a filetes de água como esse raramente eram reencontradas na margem
oposta. Se fosse algum animal, não seria tão difícil, mas um homem certamente
dificultaria as coisas. E sua família, com certeza, já teria chegado em casa da
missa, e ele não queria voltar para casa sem uma boa explicação para sua esposa
e uma boa história para contar aos filhos.
Enquanto pensava
prematuramente na volta para casa, bebendo da água fresca do riacho, divagou
olhando o entorno e não se deu conta instantaneamente do que era aquilo no
ponto em que seus olhos haviam pousado. Só se deu conta realmente do que era
quando aquilo se moveu.
Depois, com calma, por
mais que quisesse esquecer aquele momento – e todos os outros que se seguiram
até que conseguisse chegar em casa – pode refletir que o que vira de verdade
enquanto procurava algum sinal na margem oposta que lhe permitisse continuar a
trilha, fora algo sob uma grande moita fechada. Um pequeno pé. Não um pé, ele
se lembrava, um calcanhar. Ele ficou paradinho como mosca na bosta, como se
costuma dizer, e, como se o dono daquele pé soubesse o momento exato em que ele
entendera o que estava vendo, se virou e saiu em disparada. De costas.
Ele não conseguira ver
nada além daquele pé. A figura parecia estar de costas para ele por todo o
tempo em que ficou no leito do pequeno riacho, e quando ele finalmente a viu
virou-se e correu. O susto foi grande, ele se lembrava, e os cabelos do seu
braço ainda se arrepiavam quando contava a história, mesmo omitindo a parte da
sequência em que, tamanho o susto, caía para trás de bunda no chão.
Recompondo-se, subiu a
margem em direção ao fugitivo, agarrando-se em raízes sem se preocupar com as
roupas ensopadas ou com a lama que grudava em suas mãos e sapatos. Podia ouvir
o som da corrida do outro, podia ver seu rastro e, enquanto ele também saia em
disparada, puxava das costas a espingarda carregada.
Ele correu por muito
tempo. Tinha certeza disso pela dor aguda bem embaixo das costelas, e pela
queimação em seus pulmões toda vez que puxava o ar. Não queria parar a
perseguição, mas involuntariamente diminuiu o ritmo, passando a prestar mais
atenção na trilha.
Mas que trilha?
Não havia corrido por
trilha alguma. Sua presa o levou por entre a mata fechada, sem qualquer indício
de que por ali já havia passado alguém alguma vez antes. A hora já avançava, e,
mesmo não sendo ainda noite, o entardecer em um lugar daquele podia escurecer
tanto o caminho que o deixaria completamente perdido. Já não podia ouvir a
corrida da pessoa que tinha visto, por isso, e por não haver nenhuma certeza de
que aquela pessoa estivesse seguindo para algum lugar em que pudesse ser encurralada,
decidiu apenas voltar, devagar, seguindo atentamente os próprios rastros.
Não foi tarefa fácil
conseguir encontrar o riacho. Quando finalmente o fez, já era noite. Não podia
ver um palmo na frente do nariz, e como não esperava permanecer tanto tempo
fora de casa, não havia levado lamparina ou vela. Não esperava se perder, isso
era certo. Enquanto ainda havia luz, retornou por aonde veio, bem abaixado,
tentando seguir as próprias pegadas. Fez um progresso lento, e demorou ainda
mais quando o sol não mais tinha brilho para alcançar o interior da floresta.
Ele via as pegadas. Não as
dele, com marcas da sola da botina, mas as descalças e pequenas pegadas que o
intrigavam. O pé que vira pertencia a alguém – alguma coisa – que era bastante
singular. No início da perseguição parecia correr de costas, mas antes do sol
se por ao todo ele já tinha a certeza de que em vários pontos elas mudavam de
direção e mudavam de sentido, como se corresse hora de frente, hora de costas.
Isso foi um nó cego em
seus pensamentos, e por pouco ele não entrou em desespero. Havia bastante
coragem nele, mas o que realmente o impediu de perecer perdido na mata fechada
foi o medo. Enquanto tentava entender se as pegadas que tentava iluminar com o
palito de fósforo no solo o estavam ajudando a encontrar o caminho de volta,
olhou de esguelha para trás, por onde achava que o indivíduo fujão havia
corrido, e viu seus olhos. Muito, muito próximos. Duas pequenas bolébas
vermelhas, como se refletissem o brilho de uma grande fogueira.
Sem pensar, apontou o cano
da arma em direção àqueles olhos terríveis e puxou o gatilho. Não ficou para
ver se tinha acertado, correu em disparada para frente, sem se preocupar com a
trilha. Queria abrir distancia e fugir. Queria chegar a casa e se abrigar.
Queria não ter corrido de forma tão desembestada atrás de algo que não poderia
ser normal. Queria ter ido à igreja e rezado um pouco mais. Queria continuar
vivo.
Ele caiu pelo barranco e
acertou o rosto em uma pedra pontuda na margem do riacho. Não ligou para a dor,
nem para o sangue. Reconheceu o lugar e sem demora encontrou a trilha que ali
havia e correu um pouco mais. Não olhou para trás novamente.
Quando ele chegou a casa,
guiado os últimos metros pelas luzes provenientes do lampião que adornava a varanda
de tábuas, sua mulher o esperava na porta. Ela perdeu a raiva que sentia por
não saber onde ele havia se metido no momento em que viu sua aparência sofrida
e o medo estampado em seu rosto. Ele entrou correndo, arrastando-a para dentro
consigo e fechando a porta em seguida. Naquela noite não saiu nem para se
banhar e limpar suor, lama ou sangue, e também não deixou que ninguém da casa o
fizesse. Procurou se acalmar, e até manteve a compostura diante dos filhos, que
aguardaram obedientes, enquanto ele tomava uma caneca de chá de camomila que
sua esposa preparou, para ouvir a história.
Ele contou o que tinha feito e o que havia acontecido. Fingiu ter cumprido sua tarefa, trocando a verdade por uma mentira que faria seus filhos dormirem em paz. Disse que havia seguido um animal, e quando seus filhos perguntaram sobre o barulho do disparo, disse que havia atirado na onça que roubava suas galinhas. As crianças dormiram com a certeza de que seu pai era um grande homem e nada temia, mas para sua esposa contou a verdade quando estavam os dois a sós. Ela não custou a acreditar. Tinha também as próprias histórias, contadas por seu próprio pai, sobre a criatura de pés virados com olhos vermelhos como brasas que se alimentava das pessoas que se perdiam na floresta.
Ele não dormiu aquela noite.
Ficou à janela, sentado em um banco simples e desconfortável porque não teve coragem de sair novamente de casa, nem para ir à varanda andando alguns passos para pegar sua cadeira preferida, com uma manta sobre os ombros ainda sujos, dando pequenas goladas na água com açúcar que descansava na mesinha ao lado do velho rádio a pilha quando sua mulher lhe pedia calma, olhando intensamente para as árvores nos limites de sua propriedade, acalentadas pela escuridão profunda e bucólica, naquelas bandas bem no interior da mais humilde zona rural de Colatina.
Depois disso, foi se aquietando aos poucos. O tempo foi passando, e se ele não tomasse providências, o acontecimento cairia no esquecimento, e, como ocorre com as lembranças antigas, se fragmentaria, embaçaria, e o que sobrasse da lembrança ficaria guardado em um canto escuro e nublado da memória.
Quando ele, mais ou menos uma semana depois, se recompôs por completo, decidiu não esquecer.
Faria disso uma lição. E não era assim que tinha de ser?
Ele não voltou a pegar sua velha espingarda por um longo tempo. Não comprou outro cachorro, e nem sequer cercou seu quintal. Passou, ao invés disso, a sair sozinho na calada da noite, uma vez por semana. Contava aos filhos – aproveitando boa parte da versão que sua própria mulher lhe contara por ouvir de sua avó – a história de um ser folclórico que vivia no interior da mata, que tinha os pés virados e os olhos vermelhos como brasas. Dizia às crianças que aquela criatura apareceria caso fizessem estripulias ou fossem por demais desobedientes, e sua esposa confirmava tudo balançando a cabeça levemente para cima e para baixo.
Ele investiu mais tempo e o pouco dinheiro que tinha, aumentando a quantidade de aves no galinheiro, mas não expandiu as construções em direção à floresta, não senhor. No rumo da mata, levava apenas uma ave gorda, sempre que dava essas saidinhas, pronta para o abate. Não havia mais latidos de cachorro na escuridão. E, quem sabe, nada mais de saques no galinheiro.
Ele, agora, daria ainda muito mais valor ao que tinha, e dividiria com os outros – com aquilo – o pouco que pudesse, pois, se tivesse se perdido, não teria, realmente, mais nada.